sexta-feira, janeiro 27, 2012

Entender e aceitar a morte, I

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A família lava, veste, adorna, penteia e maquilha com carinho a sua filha. Colocam-na com cuidado na sua cadeira preferida. Fecham os seus olhos, como se ela estivesse a dormir. Por fim, contratam o melhor fotógrafo das redondezas para lhe tirar um belo retrato. A imagem será depois transformada num cartão de visita ou enviada numa carta, cuidadosamente selada, contendo também um botão de rosa ou um caracol do cabelo da sua filha. clip_image003Tudo isto parece-nos ternurento e típico de um pai e de uma mãe que adoram a sua filha. Sim, tudo isto ser-nos-ia perfeitamente normal, não fosse um pequenino e insignificante detalhe:

A menina está morta.

Aliás, todas estas fotos que acompanham este artigo retratam única e exclusivamente pessoas mortas.

E perguntamos a nós mesmos: como é que alguém pode tirar fotografias a entes falecidos ou, pior ainda, aceitar ser fotografado ao lado de um deles??

As fotografias de luto no século XIX

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Há cerca de 150 anos, morrer era a coisa mais comum e mais corriqueira que poderíamos encontrar na nossa existência. A morte rondava diariamente as casas de todos. Morria-se pelas coisas mais estúpidas: morria-se de parto, de constipação, de febre, de infeções, de falta de vitaminas, de sarampo, e de muitos, muitos outros exemplos. Um simples corte num dedo significava um braço gangrenado, um nariz fungando transformava-se numa gripe violenta. Só os mais fortes – tão resistentes como as ratazanas – conseguiam o feito extraordinário de ultrapassar a barreira da infância.

E depois tínhamos o resto: as pestes, as epidemias, a fome, a clip_image011guerra, a poluição, a violência doméstica, e todos os males que acompanham sempre a falta de higiene e de segurança nas casas, nas vilas, nas cidades. A natureza - ao contrário do que muitosclip_image012 hoje dizem – é tudo menos mãe. A “mãe” natureza não se compadece dos velhos, dos fracos, dos doentes. Eis, senhoras e senhoras, a lei do mais forte a funcionar na sua plenitude.

Perante um cenário destes, como reagem os vivos perante a morte? É muito simples: aceitam-na e infiltram-na nas suas vidas. E a invenção da fotografia no século XIX – um meio bastante mais barato de guardamos para a posteridade as memórias da nossa vida - permitiu que as classes baixa e média, em vez de contratarem um pintor, pudessem preservar os rostos daqueles que perderam, especialmente aqueles que partiram tão cedo “desta vida descontente”. Mais tarde, estas fotografias passaram a ter uma outra função, bem mais espiritual e mais religiosa do que inicialmente tinham: a de avisar os vivos que a vida é curta e, por isso mesmo, a nossa existência serve para vivermos em pleno, não vá a morte chegar mais cedo do que esperávamos e impedir-nos de realizar os nossos sonhos.

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Este culto à morte foi comum em muitos países, mas foi levado ao extremo sobretudo na Inglaterra do tempo da rainha Vitória (segunda metade do século XIX), o que não nos causa espanto algum, pois a mortalidade neste país – sobretudo em Londres – era assustadoramente alta. Estima-se que quase metade dos ingleses não ultrapassavam a infeliz idade dos 10 anos. A ascensão da classe burguesa aproveitou, então, a fotografia como forma de preservar a memória dos seus e, já agora, de avisar os parentes mais distantes de que alguém na família tinha falecido.

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Hoje, olhamos chocados para estas imagens e achamos todo este comportamento macabro e arrepiante. Porém, aquilo que estas fotos mais nos provocam é uma imensa pena e compaixão: esta é a cerimónia do adeus, a derradeira despedida. Há qualquer coisa de profundamente trágico numa mãe que segura a sua filha morta, como se ela estivesse apenas a dormir a sua sesta ou, pior ainda, tirar uma fotografia com a filha à espera da morte (à direita).

Hoje, estas fotografias valem verdadeiras fortunas e há quem as colecione e as restaure com muito cuidado e carinho: o site The Thanatos Arquive tem como objetivo único preservar a memória deste estranho passado, já tão longe de nós. E qualquer leitor curioso reparará neste importante detalhe: os mortos não são retratados como pedaços de carne para serem expostos aos olhos de todos. Estão vestidos e adornados com as suas melhores roupas, os seus melhores adereços, deitados ou sentados ao lado dos seus melhores brinquedos ou pertences preferidos. Há muito amor e muita dor nestas imagens.

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E, vistas bem as coisas, quem somos nós para julgar os nossos antepassados? Pelo menos ficavam ao lado dos seus, em vez de os abandonarem, como agora se faz constantemente. Afinal, quem é que não ouviu falar das histórias de tantos, tantos velhos que agora morrem sozinhos, sendo os seus corpos encontrados acidentalmente ao fim de meses ou até anos? Ninguém os visitou, ninguém telefonou para saber se estavam bem. Morreram na mais pura das solidões, triturados por um mundo que não perdoa a velhice e a fraqueza.

Antes a foto da criança morta no sofá, adornada como se fosse um anjo.

Todas as fotos foram retiradas dos seguintes sites:

The Thanatos Arquive

Paul Frecker

Os Outros, filme – O livro dos mortos (sem legendas)

1 comentário:

Mariza disse...

Um texto muito sentido e muito bem escrito, com uma pitada de moral e tudo. Assim é que é: está na altura de criticar a nossa Civilização sintética e psedoperfeita.