Se tivéssemos que descrever este romance numa só palavra,
provavelmente o adjetivo “profético” assentar-lhe-ia que nem uma luva. E não
será difícil explicar porquê.
Estávamos no ano de 1995. As torres gémeas ainda não tinham
caído; o DAESH ainda estava para nascer; a ideologia do “politicamente correto”
da extrema-esquerda só existia nos Estados Unidos da América e ainda não tinha
infetado o resto do planeta; as teorias de conspiração – muitas delas ligadas à
extrema-direita - ainda não tinham chegado à Europa; o radicalismo religioso só
existia nos livros de História; os refugiados eram uma coisa do passado; a Wikipedia
ainda não tinha sido imaginada, quanto mais as redes sociais; a internet
ainda era uma coisa de poucos e os smartphones só existiam nos filmes de
ficção científica; o veganismo era um movimento residual e o Reino Unido ainda
estava na União Europeia; o euro estava a ser criado; a China ainda não era
dona do mundo; os jornais de papel ainda eram senhores da Verdade, as lojas de
aluguer de vídeo ainda davam lucro, as salas de cinema ainda enchiam e os
leitores de MP3 flutuavam no Éter, à espera de que um carola os inventasse.
Podíamos ficar aqui durante horas a recordar tudo o que
existia há mais de 20 anos e já desapareceu ou está em vias de desaparecer.
Porém, uma coisa é certa: os anos 90 foram anos de inocência, estavam cheios de
otimismo e de fé no Futuro. Até que um homem chamado Saramago veio estragar a
festa.
Ensaio sobre a Cegueira é obviamente uma alegoria. A dita “cegueira” que de
repente ataca toda a Humanidade nada mais é do que a cegueira do Espírito
Humano. Este é um livro que, no ano de 1995, colocava uma questão: e se a
Humanidade voltasse a “cegar”, o que aconteceria se Ela se esquecesse de todas
as lições do Passado? Com base nesta interrogação, Saramago criou um mundo onde
toda a gente perdeu a capacidade de VER, e só uma mulher parecia estar imune a
esta “doença” contagiosa e epidémica.
Mas nós, que pertencemos ao ano de 2021, já não precisamos de
colocar esta questão. Só precisamos de ligar a TV ou o smartphone, e
assistirmos de camarote a um planeta que está e enlouquecer e a morrer. Tal
como este romance previu, no final do século XX.
Sufocante, clarividente, brilhante. E profético.
Felizmente, a sequela tem um final feliz.
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