A história já foi contada, a história já foi filmada, mil e uma versões das personagens já foram recriadas pelos fãs, a série já foi politizada pela extrema-esquerda e caluniada pela extrema-direita. Livros foram queimados e rasgados em público, há personagens que já mudaram de cor e de sexo, já há papéis de parede, malas, sapatos, parque de diversões, bandas musicais dedicadas exclusivamente a este mundo...
Era suposto tudo ter terminado no ano de 2011, data do último filme. No entanto, este universo está mais do que vivo, ao ponto de já ter entrado no vocabulário comum da sociedade moderna. Então, por que motivo estamos a aconselhar-vos a (re)leitura deste mundo mágico, se já toda a gente conhece o desfecho da história?
Para começar, Harry Potter era suposto ser uma série de volumes escritos para crianças, mas é com a chegada do terceiro livro que começamos a sentir que há algo negro a rastejar devagarinho neste mundo. Toda esta narrativa é contada através dos olhos de uma criança que vai crescendo e amadurecendo. Do olhar encantado e inocente da Diagon-Al na Pedra Filosofal, vamos notando a interferência dos feiticeiros negros. E é de tal forma grande que, já na obra final, a famosa praça mágica transformou-se num esgoto cheio de lojas fechadas, magia negra e pedintes nas ruas. Podemos sentir o colapso económico de uma sociedade outrora próspera, agora nas mãos de fanáticos que esgotam os seus recursos em nome de ideologias “neo-nazis”. O que nos leva a chegar a uma conclusão: por detrás do olhar “fofucho” do mundo dos feiticeiros, o que existe na realidade é uma feroz crítica à nossa sociedade atual. Com efeito, o livro cinco é um verdadeiro libelo contra o Sistema de Educação moderno, que tende a valorizar tópicos como “atitudes e valores”, em vez de dar valor a conteúdos programáticos que serão úteis para o mercado de trabalho. No mundo dos mágicos, o professor ensina, o pai educa e os dois trabalham juntos. Em Hogwarts, os docentes têm total autoridade sobre os alunos, de tal forma que podem recusar a entrada de um deles na sala de aula (para sempre!!), caso falte ao respeite ou não trabalhe o suficiente (claro que tal não acontece, as crianças nunca chegam a ser expulsas, porque a sua postura é quase sempre cordial e respeitosa). A guerra cerrada entre Dumbledore e Umbridge não é apenas uma guerra de poderes: é também uma sociedade antiga, mais meritocrática, mais hierárquica e mais exigente, que se vê ameaçada por teorias de ensino demagógicas e doutrinadoras e que, pior ainda, retiram o valor a esse ser humano que é o “professor”, transformando-o numa mera roldana da Máquina, nada mais. Não se esqueçam, afinal de contas, de que a autora desta série foi professora, e conheceu muito bem o sistema de ensino por dentro.
Como se tais críticas não bastassem, nota-se o olhar mordaz e altamente severo do “jornalismo moderno”: voltando ao livro cinco (A Ordem da Fénix), não é difícil percebermos até que ponto os canais de informação estão ligados aos grandes poderes, e até que ponto eles conseguem transformar uma mentira numa verdade. Devagarinho, como um veneno de longa duração, vidas e reputações vão sendo destruídas uma a uma, só porque certas pessoas se tornaram incómodas para o Novo Regime. Não vos faz lembrar nada?
E quem é que não reparou na influência fortíssima dessa célula da sociedade chamada “família”? E é de tal forma importante, que até os próprios Malfoys traíram várias vezes o próprio Voldemort, só para se salvarem uns aos outros! Família está primeiro, ponto final. As figuras do pai e da mãe são cruciais para o bem-estar psíquico de cada personagem deste livro: Lilly sacrificou-se para salvar o seu filho Harry; Molly Weasley largou a sua independência para se dedicar exclusivamente à educação dos seus filhos; Narcissa Malfoy, mãe de Draco, traiu duas vezes o próprio Voldemort, para tentar salvar o seu filho... As mães e os pais que falham criam monstros. Podemos também falar da influência da figura paterna, mas assim este texto nunca mais teria fim.
Por fim, ler esta coleção de uma assentada permite-nos ver até que ponto a própria escrita de J.K.Rowling foi sofrendo evoluções: da linguagem simples e clara – perfeita para crianças – passamos para uma narrativa cada vez mais descritiva, mais metafórica e mais rica. Mais ainda, o tom da escrita torna-se cada vez mais profético, anunciando nas entrelinhas sinais de perigo que estão a aparecer no NOSSO mundo. Por isso mesmo, reler esta série é um dever. Vão ser muitos aqueles que irão ficar espantados com todas as “segundas leituras” que não conseguiram detetar no passado, e que agora são tão claras como a água.
São assim, as obras-primas: intemporais e cheias de surpresas.
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