A Morte, o Amor e a Vida
Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade  
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco  
Estendi-me na minha prisão de portas virgens  
Como um morto razoável que soube morrer  
Um morto cercado apenas pelo seu nada  
Estendi-me sobre as vagas absurdas  
Do veneno absorvido por amor da cinza  
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue  
Queria desunir a vida  
Queria partilhar a morte com a morte  
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida  
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho  
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro  
Havia eliminado o gelo das mãos postas  
Havia eliminado a invernal ossatura  
Do voto de viver que se anula  
Tu vieste o fogo então reanimou-se  
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de estrelas  
E a terra cobriu-se  
Da tua carne clara e eu senti-me leve  
Vieste a solidão fora vencida  
Eu tinha um guia na terra  
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido  
Avançava ganhava espaço e tempo  
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente para a luz  
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava as suas velas  
O sono transbordava de sonhos e a noite  
Prometia à aurora olhares confiantes  
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro  
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos  
O repouso deslumbrado substituía a fadiga  
E eu adorava o amor como nos meus primeiros tempos  
Os campos estão lavrados as fábricas irradiam  
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme  
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas  
Nada é simples nem singular  
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite  
A floresta dá segurança às árvores  
E as paredes das casas têm uma pele comum  
E as estradas cruzam-se sempre  
Os homens nasceram para se entenderem  
Para se compreenderem para se amarem  
Têm filhos que se tornarão pais dos homens  
Têm filhos sem eira nem beira  
Que hão-de reinventar o fogo  
Que hão-de reinventar os homens  
E a natureza e a sua pátria  
A de todos os homens  
A de todos os tempos.  
Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"     
Tradução de António Ramos Rosa
 
 
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