sexta-feira, outubro 28, 2022

Livro da Semana - O País das Laranjas, Rosário Alçada Araújo

 

Hoje, vou contar-vos uma história da minha família: quando a minha mãe nasceu, toda a gente ficou espantada com o facto de ela ser tão loura. É que no Alentejo, no tempo de Salazar, não era comum haver crianças de cabelo dourado e, por isso mesmo, elas faziam sempre sensação. Sim, elas existiam no nosso país, mas era mais para o norte de Portugal, o sul era uma região de gente mais pequenina e mais trigueira. Pois bem: minha avó conta que, sempre que ela ia de férias para uma terra do centro ou sul, toda a gente perguntava se ela tinha adotado “uma das austríacas”. Ninguém conseguia compreender como é que um casal tão moreno tinha uma menina tão loura. Só podia ter sido adotada, é claro!

Tudo isto vem a propósito do nosso livro da semana, O país das laranjas, de Rosário Alçada Araújo. Embora estes dois irmãos sejam personagens fictícias, muitas das peripécias desta narrativa são reais.  Como a própria autora assume na secção dos “Agradecimentos”, este foi um livro que, embora de ficção, se apoiou em testemunhos verdadeiros. E foi com base em inúmeras pesquisas, testemunhos e entrevistas, que este país das laranjas foi criado.

Estamos, portanto, a falar de um romance histórico cuja ação teve lugar no Portugal do século XX. Martha, personagem fictícia, é separada da família e do irmão para ir viver temporariamente em Portugal. Áustria, o seu país natal, está totalmente devastado pela guerra, e a família inteira está a passar fome. Com a ajuda da Cáritas, ela será acolhida numa família extremamente abastada, e viverá anos felizes, apesar das imensas saudades da sua família. No entanto, chegará o momento em que ela terá de partir. Partirá feliz? Adaptar-se-á a uma Áustria que já não conhece?

Contado pelos olhos de uma criança amada, a imagem de Portugal é a imagem de uma família acolhedora, boa, cristã, cheia de compaixão. Mas não deixa de ser um país genuíno: as 5500 crianças austríacas que foram acolhidas voltaram para a sua terra cheias de histórias e vivências bonitas para contar aos seus. Pelos vistos, a experiência foi boa, houve muito amor e muita dedicação. Esta história serve para mostrar que, em tempos difíceis, é sempre possível fazermos algo para ajudar os mais necessitados. E esperemos que as crianças do século XXI, vindas de terras também devastadas pela guerra, consigam encontrar em Portugal o acolhimento caloroso que as crianças austríacas mereceram, no século XX.

Esperemos que a História se repita.

 

 

 

sexta-feira, outubro 21, 2022

Livro da Semana - Manuscrito encontrado em Accra, Paulo Coelho

 

Supostamente este manuscrito existe. Supostamente foi encontrado no Egito, juntamente com o famoso espólio de Nag Hammadi, descoberto em 1948. Supostamente um tal de Sir Walter Wilkinson encontrou-o e traduziu-o. Porém, quase tudo é uma ilusão de artista.

Sim, o espólio de Nag Hammadi é verdadeiro e criou sensação em 1948. Sim, é verdade que existiu um tal de Walter Wilkinson, mas este era um escritor, era botânico e era um apaixonado pela arte das marionetas. No entanto, tudo o resto foi inventado. E não, Paulo Coelho não está a mentir, esta é uma estratégia literária inventada pelos românticos, há quase 300 anos, com o objetivo de tornar uma história mais verosímil, mais realista, mais verdadeira. O escritor italiano Umberto Eco utilizou exatamente o mesmo truque na sua obra-prima O nome da Rosa. E Paulo Coelho fez exatamente o mesmo: com base em factos reais, criou um lindíssimo texto filosófico que poderia ter sido escrito e dito no século XI.

A sinopse é simples: Jerusalém está prestes a ser invadida – para não variar – desta vez pelo exército dos Cruzados. Um filósofo conhecido pelo nome “Copta” convoca a população desta cidade - cristãos, judeus e muçulmanos – para ouvirem algo muito importante que ele tem a dizer. Todos esperam um apelo às armas e à guerra e, no entanto, o que acontece é exatamente o contrário. Este filósofo não pede a guerra, pede a paz. E é precisamente este discurso na praça pública que chegou até nós…

No ano de 2022, às portas de uma III Guerra Mundial, vale a pena ler um livro destes? As mensagens são, sem dúvida, conflituosas: devemos aceitar o presente ou temos que lutar contra ele? Queremos a rendição da Ucrânia ou queremos passar fome? E, já agora, que poder é que NÓS, o povo, temos para mudarmos o mundo? Estas são as questões que nos surgem quando estamos a ler esta obra de Paulo Coelho. E isto demonstra até que ponto este livro é atual.

Porque os livros que nos fazem pensar e questionar são SEMPRE atuais.

sexta-feira, outubro 14, 2022

Livro da Semana - Uma Questão de Cor, Ana Saldanha

 

-Mas o que é que eu fiz? Nada. Só estou aqui a conversar com o teu primo escurinho. Não sabia que tinhas disto na família.

E foi assim que o primeiro dia na nova escola do Danny correu: com “bocas foleiras”, professores espantados por verem a sua prima com um rapaz escurinho, gente que não acreditava que ela tinha negros na família, colegas a dizerem “gracinhas” à volta de cores de pele…

Na verdade, toda esta história gira à volta de Nina, a prima do Danny. É ela quem conta na primeira pessoa todas estas peripécias que se estão a desenrolar. E, no início, ela nem achou piada nenhuma à mudança: estava tão feliz com o seu novo computador e o seu quarto e de repente, vindo do nada, teve de ceder o seu quarto para o Danny, que sofre de asma e vai morar na sua casa, para estar mais perto da nova escola.  Mais um pequenino pormenor: Daniel é mestiço, e tal característica física irá trazer muitas zangas e conflitos à nossa personagem principal. No entanto, até a própria Nina vai ter de enfrentar os seus próprios preconceitos. É que o paternalismo nada mais é do que um racismo escondido e educado…

Escrito em 2002, este livro continua a ser bastante atual, 20 anos depois. Sim, é verdade que a loucura agora já não é os desktops, é os smartphones. E, no entanto, a mentalidade continua a ser quase a mesma. Sim, é verdade que as pessoas já começam a ter consciência de certas palavras e ações, mas a mentalidade continua a ser quase a mesma. Sim, é verdade que os emigrantes já não são quase todos da África, muitos até já começam a vir da Ásia e até da Europa… mas a mentalidade continua a ser quase a mesma. Por isso mesmo, esta obra, uma geração depois, continua a ser bastante atual. E, por isso mesmo, continuamos a aconselhar a sua leitura.

Afinal, a mochila cultural veio para ficar.

sexta-feira, outubro 07, 2022

Estante do mês de outubro 2022, Ano Europeu da Juventude.

 

Ainda faltam dois meses para terminarmos este ano, mas ainda dá para falarmos nele, até porque a nossa escola anda entusiasmada à volta do tema da Mochila Cultural. Ora, tendo em conta de que estas duas últimas gerações – a dos milénios e a dos Z – têm sido precisamente as que mais viajaram em toda a História da Humanidade, faz todo o sentido que comecemos este ano prestando homenagem aos nossos alunos, muitos deles já com sonhos de viver alguns anos num país estrangeiro.

Esta estante deste mês não pretende ser literária e artística. Pretende, isso sim, abordar as eternas grandes questões que preocupam as crianças e adolescentes de todo o mundo: a guerra, a depressão, o suicídio, projetos futuros, a amizade, a escola, a dor de crescer, a desilusão, o espírito de equipa e a vontade individualista de sermos nós mesmos. Além disso, esta estante irá também servir para outras atividades deste mês, por isso todos estes livros foram selecionados e planeados com cuidado.

As aulas começaram no final de setembro e muito já foi feito, mas outubro é sempre o mês que estreia as nossas exposições e conselhos de leitura. Como sempre, desejamos que as nossas escolhas sejam apelativas para todos!

Podem ver um vídeo com a apresentação de tudo aqui.

Bom ano letivo e boas leituras!

Livro da Semana - O pintor debaixo do lava-loiças, Afonso Cruz

 

Não há nada a fazer: Afonso Cruz está na moda. Só a nossa biblioteca dispõe de vários títulos, entre eles o famoso Os livros que devoraram o meu pai, já muito molinho e cheio de rugas, sinal de que esta obra tem sido lida por muitos. Desta vez, O pintor debaixo do lava-loiças começou a fazer sensação por causa do Plano Nacional de Leitura, mas também é necessário referir que esta obra possui um título bastante apelativo e misterioso, capaz de cativar a curiosidade dos alunos.

Afonso Cruz é um escritor de uma imaginação prodigiosa, como já há muito tempo não víamos. O último grande mestre das narrativas cativantes foi José Saramago, um escritor que nunca contava a mesma história duas vezes. Mas, pelos vistos, Afonso Cruz parece seguir o mesmo caminho: desta vez já não estamos a falar de um filho que anda à procura de um pai perdido num oceano de palavras, agora estamos a falar de um episódio real, ligado ao passado do autor e, obviamente, reinventado: Esta é a história, baseada num episódio real (passado com os avós do autor), de um pintor eslovaco que nasceu no final do século XIX, no império Austro- Húngaro, que emigrou para os EUA e voltou a Bratislava e que, por causa do nazismo, teve de fugir para debaixo de um lava-loiças. Pelo meio, conhecemos o Livro dos Olhos Acesos e, mais tarde, O Livro dos Olhos Fechados; conhecemos o seu imaginário, os seus amigos, o grande amor da sua vida, uma máquina de fazer areia, um crocodilo voador, uma empregada D.  Rosa que tem medo de um pintor escondido na cozinha de uma casa de um país que vive numa ditadura. Aliás, o capítulo Uma ponte entre dois fracassos foca precisamente o contraste entre um mundo em guerra e um país ilusoriamente feliz, eternamente fatalista, apesar do imenso sol que ilumina os portugueses.

Este livro consegue surpreender-nos sempre e não o conseguimos largar.  É também um livro ligado ao mundo: um eslovaco austro-húngaro perdido na Alemanha, em fuga para Portugal, com desejos de viver nos Estados Unidos da América. Por isso mesmo, esta é uma obra excelente para inaugurarmos a nossa mochila cultural!

Como diz o livro – e muito bem! – A criatividade é o maior crime que existe.

 

Citação retirada de:

https://www.wook.pt/livro/o-pintor-debaixo-do-lava-loicas-afonso-cruz/10952310