terça-feira, dezembro 11, 2018

Livro da Semana

O livro dos cansaços, Licínia Quitério

wps3357.tmpEm tempos que já lá vão; no tempo em que uma ferida num dente equivalia à morte; no tempo em que “fazer amor” era sinónimo de “salvar a nossa tribo”; no tempo em que a família era tudo, e os lobos e os tigres espreitavam as nossas casas, farejando a criança tenra; no tempo em que o Homem-bicho valia tanto como uma lebre na serra e negociava a sua vida com os anjos e os demónios, taco a taco, como se o mundo fosse uma feira local... Foi nesse tempo que nasceu a Poesia.

Não, não se recitava, cantava-se. Canto I, Canto II, Lusíadas, Homero. Oráculo de Delfos, ladainhas da avó, cantigas a Santa Bárbara, serenatas à janela. Os deuses gostam da Música, que é a matemática do universo, a voz do Cosmos, a Alma Humana.

Depois vieram as máquinas e a Vida calou-se. Hoje não falamos, twitamos. As serenatas são hoje beats, o mistério já foi descoberto, a avó está longe “na terra”, a morrer sozinha. Resta-nos a chapa cheia de luzinhas brilhantes e barulhinhos engraçados. Morremos sentados. E mudos.

E, no entanto, este futuro já tinha sido profetizado por Marguerite Duras. Foi numa entrevista em 1985 (podem lê-la e ouvi-la aqui ). Acertou em tudo. Mas deixou sempre a esperança:

Um homem, um dia, lerá, e daí tudo recomeçará.

É tudo uma questão de tempo. Nós somos a geração que planta as sementes e guarda o conhecimento. Seremos necessários, no futuro. Por isso, as vozes humanas, que teimam ainda em cantar e fazer a diferença, surpreendem-nos quando estamos em estados de sonolência e brotam dos lados que menos esperamos.

wps3358.tmpLicínia Quitério é o exemplo perfeito desta “surpresa das palavras”: numa rede social chamada facebook, onde as pessoas gostam de ser vaidosas e de mostrar as suas vidas pessoais, foi neste lugar que se criou um grupo de amigos fieis, todos juntos à volta desta poetisa única, original, délfica. Fez-se sozinha: sem publicidade, sem ajuda de editoras, sem cunhas, sem amigos poderosos, sem prémios especiais. Foi cantando, calmamente, harmoniosamente. E o grupo foi crescendo, e o “passa a palavra” fluiu.

Não é só de prosa que o mundo da Literatura vive: a poesia, hoje, pode estar dormente, amorrinhada, esquecida. Mas ainda vive.

Foi - e será sempre - a Voz Humana no estado mais puro.

Neste tempo das mulheres – poema recitado pela própria

9 comentários:

Sónia Costa disse...

Licínia Quitério é o exemplo de que, por vezes, as pessoas com verdadeiro talento e mérito podem furar um sistema opaco cheio de gente convencida e peneirenta e criar o seu próprio nicho. É uma pequena voz que diz, dentro de nós, que ainda é possível produzir beleza num mundo feio. Gostaria que o mundo tivesse mais gente como ela.

Clara disse...

Felizmente que hoje já é reconhecida, as Editoras disputam-na, os convites para apresentações de livros, confer~encia e etc multiplicam-se,poetas «na berra» escrevem prefácios para os seus livros. Mas fez-se sozinha, sim, foi a enorme força e o grande valor d sua Poesia que abriram o caminho e triunfaram.

valéria mello disse...

Adoro poesia, vou anotar a sugestão.

Unknown disse...

Texto maravilhoso,de uma triste realidade, gostei muito parabéns!

Unknown disse...

Maravilhoso texto de uma triste realidade, gostei muito, parabéns!

Susana Moreira disse...

Vai para a minha lista das leituras por fazer. Obrigada!

Beatriz Sá disse...

Excelente texto li e reli

Beatriz Sá disse...

Excelente texto li e reli

Beatriz Sá disse...

Excelente texto li e reli