O livro dos cansaços, Licínia Quitério
Em tempos que já lá vão; no tempo em que uma ferida num dente equivalia à morte; no tempo em que “fazer amor” era sinónimo de “salvar a nossa tribo”; no tempo em que a família era tudo, e os lobos e os tigres espreitavam as nossas casas, farejando a criança tenra; no tempo em que o Homem-bicho valia tanto como uma lebre na serra e negociava a sua vida com os anjos e os demónios, taco a taco, como se o mundo fosse uma feira local... Foi nesse tempo que nasceu a Poesia.
Não, não se recitava, cantava-se. Canto I, Canto II, Lusíadas, Homero. Oráculo de Delfos, ladainhas da avó, cantigas a Santa Bárbara, serenatas à janela. Os deuses gostam da Música, que é a matemática do universo, a voz do Cosmos, a Alma Humana.
Depois vieram as máquinas e a Vida calou-se. Hoje não falamos, twitamos. As serenatas são hoje beats, o mistério já foi descoberto, a avó está longe “na terra”, a morrer sozinha. Resta-nos a chapa cheia de luzinhas brilhantes e barulhinhos engraçados. Morremos sentados. E mudos.
E, no entanto, este futuro já tinha sido profetizado por Marguerite Duras. Foi numa entrevista em 1985 (podem lê-la e ouvi-la aqui ). Acertou em tudo. Mas deixou sempre a esperança:
Um homem, um dia, lerá, e daí tudo recomeçará.
É tudo uma questão de tempo. Nós somos a geração que planta as sementes e guarda o conhecimento. Seremos necessários, no futuro. Por isso, as vozes humanas, que teimam ainda em cantar e fazer a diferença, surpreendem-nos quando estamos em estados de sonolência e brotam dos lados que menos esperamos.
Licínia Quitério é o exemplo perfeito desta “surpresa das palavras”: numa rede social chamada facebook, onde as pessoas gostam de ser vaidosas e de mostrar as suas vidas pessoais, foi neste lugar que se criou um grupo de amigos fieis, todos juntos à volta desta poetisa única, original, délfica. Fez-se sozinha: sem publicidade, sem ajuda de editoras, sem cunhas, sem amigos poderosos, sem prémios especiais. Foi cantando, calmamente, harmoniosamente. E o grupo foi crescendo, e o “passa a palavra” fluiu.
Não é só de prosa que o mundo da Literatura vive: a poesia, hoje, pode estar dormente, amorrinhada, esquecida. Mas ainda vive.
Foi - e será sempre - a Voz Humana no estado mais puro.
9 comentários:
Licínia Quitério é o exemplo de que, por vezes, as pessoas com verdadeiro talento e mérito podem furar um sistema opaco cheio de gente convencida e peneirenta e criar o seu próprio nicho. É uma pequena voz que diz, dentro de nós, que ainda é possível produzir beleza num mundo feio. Gostaria que o mundo tivesse mais gente como ela.
Felizmente que hoje já é reconhecida, as Editoras disputam-na, os convites para apresentações de livros, confer~encia e etc multiplicam-se,poetas «na berra» escrevem prefácios para os seus livros. Mas fez-se sozinha, sim, foi a enorme força e o grande valor d sua Poesia que abriram o caminho e triunfaram.
Adoro poesia, vou anotar a sugestão.
Texto maravilhoso,de uma triste realidade, gostei muito parabéns!
Maravilhoso texto de uma triste realidade, gostei muito, parabéns!
Vai para a minha lista das leituras por fazer. Obrigada!
Excelente texto li e reli
Excelente texto li e reli
Excelente texto li e reli
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