quinta-feira, março 19, 2020

Agradeçam a Veneza!


 Se perguntarmos aos Portugueses do século XXI o que lhes vem à cabeça, assim que ouvem a palavra “Veneza”, provavelmente pensam logo num belo Carnaval carregado de máscaras, as gôndolas, Romantismo ou os alicerces de uma cidade antiga a afundarem-se lentamente. No entanto, se esta mesma questão tivesse sido colocada aos Portugueses do século XVI, seríamos logo bombardeados com insultos, gritos, uma cruz no ar ou até medo. É que, durante muito tempo, o infame reino de Veneza tornou-se lendário pelos seus jogos políticos maquiavélicos, espiões por toda a parte, guerras fundadas por várias famílias bancárias e um nível de corrupção que faria corar qualquer Mafia do Leste. Hoje, foram-se os anéis mas ficaram os dedos. Veneza hoje vive da sua arte, do seu prestígio, do turismo e do seu bom gosto pela comida italiana.

E, no entanto, uma coisa terá que ser dita: numa altura em que ninguém, no século XV, conseguia fazer frente à Peste Negra, este reino foi o único a controlar esta pandemia universal. Como? Através de um sistema de controlo sanitário que ficou mundialmente conhecido pelo nome “Quarentena”. Porém, Veneza não a inventou, simplesmente melhorou este sistema, tornando-o mais eficaz. Como?
A segregação de grupos infetados já vem de longe. Basta lembrarmo-nos das leprosarias: todos os que sofriam desta doença eram ostracizados e empurrados para zonas longe da população saudável, e aqueles que se deslocavam eram obrigados a tocar sempre um sininho, de forma a permitir que a multidão se afastasse atempadamente deles. Por isso, podemos mesmo afirmar que algumas medidas profiláticas – que aos nossos olhos parecem cruéis mas que, para a época, foram necessárias – já eram até do conhecimento do Antigo Egito e da Civilização Babilónica. Todavia, fechar toda uma cidade ou bairro – independentemente de estarmos ou não infetados – surgiu graças a uma das maiores catástrofes da Humanidade: a chegada da Peste Negra, no século XIV.
A cidade de Dubrovnik, Croácia, foi a primeira, no ano de 1377, a testar este novo método de proteção. Foi a primeira a obrigar os navios vindos de zonas afetadas a ficarem parados nos portos durante cerca de 30-40 dias. Não foi, no entanto, eficaz, uma vez que outras medidas não foram criadas: normas de higiene, isolamento das multidões, evitar ajuntamentos, etc.

Foi Veneza a dar o grande passo: em 1423, inspirada na estratégia de Dubrovnik, este poderoso reino independente criou o primeiro hospital para as vítimas da Peste. Chamava-se “Nazareto” ou “Lazareto” e ficava na ilha de Santa Maria de José ou Nazarethum, local onde os navios tinham de parar e esperar 40 dias, antes de desembarcarem.
Já agora, porquê 40 dias? Segundo Mark Harrisson, professor da universidade de Oxford, esta escolha poderá ter sido inspirada na Bíblia: Jesus retirou-se num deserto e jejuou durante 40 dias e 40 noites. Mas esta explicação parece ser universal. Afinal, o próprio Buda também jejuou durante este período, e vivia na Índia! Há certas epifanias que, pelos vistos, parecem pertencer a um subconsciente coletivo.
Mas Veneza não se ficou por aqui: todos os cidadãos que apresentassem sintomas da doença, eram obrigados a fechar-se em casa e estavam proibidos de sair. Também foi decretado que os ajuntamentos estavam proibidos. Mas ainda foram mais longe: foi graças à Peste Negra que as ruas e mercados começaram a ser lavados e desinfetados com muita regularidade. Antes, era comum fazer-se a matança dos animais ao vivo, e escorria sangue nas ruas das feiras e mercados. Depois da Peste Negra, medidas sanitárias começaram a ser levadas mais a sério.
Uma grande ironia: o gesto de lavar as mãos – e as mãos são um dos maiores focos de infeção de qualquer doença ou praga – só começou a ser levado a sério no século XIX, e devemo-lo a Ignaz Semmelweis, um grande homem que foi ridicularizado pelos seus próprios colegas e acabou por sofrer um fim trágico (podem ler a sua história aqui)
Agora já sabem: se hoje as pandemias já não matam tanto como antigamente, é graças a estas medidas profiláticas que se evitam tantas mortes. Por outro lado, as mentes já mudaram: neste momento, milhões de Portugueses aceitam tranquilamente estes “planos de contingência” e vivem em “estado de emergência” sem entrarem em pânico. É temporário. Já passa. É para isso que servem os cafés, os chás de camomila e (infelizmente!) os cigarros.
Agora dava jeitinho ter um cãozinho, não dava? Bela desculpa para arejarmos um bocadinho…
Imagens retiradas daqui e daqui .

3 comentários:

Sónia Costa disse...

As medidas de contingência venezianas resultaram mesmo. Mesmo com as contágios, o número de doentes diminuiu a pique e acabou por desaparecer. A Humanidade agradece.

Cristina Santos disse...

Muito interessante! Excelente publicação! Veneza é a minha cidade preferida!

valéria mello disse...

Que interessante, não conhecia as origens das medidas que estamos tomando hoje.