Livro da Semana - Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira
Está muito esquecida, esta obra, e injustamente: num tempo em que a palavra “medo” está tão presente - ao ponto de a Humanidade começar a paralisar, a estagnar ou, pior ainda, desistir de lutar – este é o momento certo para ressuscitarmos obras-primas da literatura mundial, que nos ensinem a questionar, a pensar e a agir. Estes não são tempos para estarmos parados “a ver navios passar”. O Planeta Terra encontra-se neste momento numa encruzilhada: ou fazemos uma mudança radical de 180 graus ou estamos condenados ao fracasso. E não, não estamos a ser alarmistas, estamos a ser realistas.
Já toda a gente sabe – ou devia saber! – que Aventuras de João Sem Medo é claramente uma alegoria de um Portugal fechado, conservador, mergulhado na ditadura de Salazar. Escrito em 1963, José Gomes Ferreira inventou na sua cabeça uma aldeia onde os habitantes não fazem outra coisa senão reclamar ou choramingar. As desgraças da vida sucedem-se, mas ninguém está minimamente interessado em mexer uma palha e arriscar uma ideia nova.
Que este livro tenha sido escrito no Portugal do Estado Novo não é surpresa para ninguém. O problema reside no facto de que toda a Civilização Ocidental é hoje uma terreola “Chora-que-logo-bebes”: 60 anos depois, este livro continua a ser não só atual como, pior ainda, parece que o nosso mundo – antes tão ousado e criativo! – se transformou num Portugal fechado, escuro, infantilizado e cobarde.
Falta ao Ocidente “a espinha”, a maturidade, a ousadia, o estudo, o trabalho árduo, o questionar. Para quando, os Joões sem medo? Quanto tempo mais teremos de esperar para encontrarmos um homem e uma mulher que tenham uma ideia verdadeiramente revolucionária, capaz de galvanizar as massas? Lá de vez em quando aparece uma Greta subnutrida que se balda às aulas e fala dos direitos dos animaizinhos e do aquecimento global. Fala no palco de umas Nações Unidas que votaram em massa para que a Arábia Saudita - um país que odeia mulheres – comande a Comissão dos Direitos das Mulheres. Tudo isto é superficial, fútil, tão vago, tão vazio e tão frágil como bolhinhas de sabão. Vai-se às manifs para se tirar uma selfie e ficar catitota nas redes sociais. De preferência às sextas, para se baldarem às aulas. Como faz a Greta. E não se esqueçam do Ipad, feito por crianças escravas, e a t-shirt tão trendy, feita por crianças escravas, e os sapatinhos Nike, feitos por crianças escravas. E depois lá vamos para casa no nosso pópó. Feito por crianças escravas. E sempre a reclamarmos, sempre a choramingarmos da nossa vidinha tão triste e tão sem sentido.No entanto, esta história satírica oferece-nos precisamente uma pista para que o Ocidente triunfe mais uma vez: a revolução é sempre individual, nunca coletiva. Compete a nós – e só a nós – regularmos as nossas vidas. O resto virá por si. Talvez os outros vejam o nosso sucesso e tentem imitar-nos. Muitas vezes, tudo começa com um joão sem medo que se farta, que sai do rebanho e que, involuntariamente, acaba por ser um “role model” para todos aqueles que também estão cansados de viver uma vida constantemente adiada. Nem sempre acontece e o cinismo vence. Como, aliás, aconteceu com o protagonista deste livro. No entanto, a mudança nunca é feita para mudarmos o mundo, é feita para mudarmos a nossa vida. Mas a nossa mudança poderá inspirar os outros que estão perto de nós. E é assim que um verdadeiro movimento começa: alguém tem uma ideia fenomenal, outros começam a imitá-lo. Devagarinho, silenciosamente, grão a grão, o grupo vai crescendo. E um dia, décadas depois, toda a gente repara nele.O cinismo também tem o seu lado positivo: a partir do momento em que deixamos de acreditar nos outros, nada mais nos resta do que acreditarmos em nós mesmos. Longe dos holofotes e das redes sociais, da fogueira das vaidades, os verdadeiros joões sem medo estão a plantar árvores, a recolher cães abandonados, a inventarem fornos solares, a viver no campo. Estão a conversar com os velhos, a distribuir comida para os sem-abrigo, a construir uma casa ecológica, a restaurar livros antigos, a conservar filmes clássicos, a contar histórias a crianças, a tocar um antigo instrumento musical. Esses não vão falar para a sede das Nações Unidas. Nem querem.Brilhante, acutilante, hilariante e moderno, eis um livro que merece ser lido por todos os cidadãos deste planeta. Esta sátira a Portugal não é geográfica, esse é o lado bom de uma alegoria, pode ser lida e entendida por todos.Afinal, quem é que nunca desejou largar tudo e começar tudo de novo?
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