Dentro do Segredo, de José Luís Peixoto
Por
muito que não o queiramos admitir, as sociedades ultra fechadas possuem uma
força muito forte sobre o nosso imaginário e a Coreia do Norte não é exceção.
Como será a vida neste mundo à parte, parado no tempo, onde só agora é que
começa a haver telemóveis (que, obviamente, só servem para chamadas locais)? O
que comem os norte-coreanos? Como se vestem? Como serão os jornais, as
revistas, os filmes? Como serão as escolas, os hospitais, os meios de
transporte? Foram todas estas questões e muitas mais que levaram José Luís Peixoto
a passar mais de uma semana no local menos divertido do planeta: a Coreia do
Norte.
O seu desejo
de visitar este país aconteceu quase por acaso, quando este autor estava a
viver em Los Angeles e conheceu pessoalmente um refugiado vindo da ditadura
mais fechada do planeta. Desde aí, a vontade de experienciar diretamente esta
nova nação ganhou forças, ao ponto de nem sequer avisar os amigos e os parentes
da sua decisão (a mãe foi a única a sabê-lo).
O olhar de
José Luís Peixoto, em relação à Coreia do Norte, é extremamente humano, apesar
de o autor ter feito claramente um esforço para se distanciar emocionalmente de
tudo o que estava a testemunhar. Toda a sua visita não passou de um roteiro
turístico de propaganda ao regime, planeada até ao último pormenor, desde a
entrega de jornais e revistas logo no avião (os guias ensinaram-lhe a dobrar um
jornal sem cortar a cara do ditador) até aos minutos que gastava a fazer
jogging de manhã, à porta do hotel. Viu museus dedicados à guerra contra os
Americanos (propaganda, é claro); entrou em “fabulosas bibliotecas”, sempre
atuais e dedicadas às ciências e às artes (os livros estrangeiros estavam todos
proibidos); viu que o hotel e os centros de educação tinham todos página da
Google (bloqueada, é claro); entrou em fábricas gigantescas que produziam
700.000 toneladas de produtos (mas não viu ninguém entrar e sair das mesmas);
viu os vários canais de televisão (que davam sempre o mesmo); viajou no
insólito metro da Coreia do Norte (que também foi construído para ser um
bunker, daí o facto de ser o metro mais profundo do mundo); esteve uma tarde
numa “típica aldeia coreana” (onde não morava ninguém); bebeu água da sagrada
fonte do “Querido Líder” (que lhe deu uma intoxicação de dois dias)…
A Coreia do
Norte tenta, a todo o custo, convencer os turistas de que é moderna, atual,
virada para o progresso e o futuro. E, no entanto, as cassetes de vídeo são pré
VHS, a eletricidade está sempre a cair, nos hospitais parece não haver ninguém
e as ruas, meticulosamente alcatroadas, quase não têm um único carro a
circular. Este país, todo ele, é um gigantesco anacronismo: as bolachas à venda
estão dez anos fora do prazo, a estética parou nos anos setenta e os coreanos
optam sempre por andar a pé, pois os transportes públicos são mínimos. Lado a
lado com imagens de jovens cientistas felizes e risonhos, os coreanos cavam a
terra como se ainda vivessem na Idade Média, numa apatia que se confunde com
infelicidade. Amarão mesmo os coreanos os seus queridos líderes, ou é só
fachada?
Este não
será sem dúvida o mais aclamado livro de José Luís Peixoto. Porem, foi aquele
que mais gostei de ler, pelas razões já ditas acima. Através de uma linguagem
falsamente objetivada, Peixoto descreve uma nação que comprova a 100% o quanto
é fácil um louco privar uma população do seu passado histórico e identidade
cultual e reconstruir literalmente do nada um mundo virtual onde até o tempo é
diferente: na Coreia do Norte, vive-se no ano 102, mais coisa menos coisa…Para
todos os efeitos, esta nação é o sonho de qualquer regime ditatorial.
Sonho este
que, infelizmente, já deu provas de poder ser real.
BEM real…
Assistam agora a um documentário sobre a Coreia do Norte:
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