Já foi leitura obrigatória nas escolas portuguesas, depois
não foi, depois voltou a ser, depois não foi, depois voltou a ser… Por que
motivo insistimos tanto num livro que já não tem nada a ver com um século XXI
que é mais digital do que orgânico, e está mais ligado aos caminhos aéreos do
que marítimos?
Ou será que esta compilação é mais contemporânea do que
pensamos?
Todos estes relatos de naufrágios do século XVI foram
compilados no século XVIII por “um tal” Bernardo Gomes de Brito. Não sabemos
nada dele, a não ser três coisas: era um homem muito erudito/culto
(provavelmente devia ter “sangue azul”); foi ele quem arquivou uma série de
relatos de testemunhas de naufrágios em dois volumes, dando mais tarde o título
acima mencionado; provavelmente nasceu em 1688 e provavelmente morreu em 1760.
É tudo. Não lhe conhecemos o rosto, não sabemos se casou, se teve filhos, se
foi feliz, se vivia na Corte ou viajava muito, se vivia em Portugal ou fora
dele, se era progressista ou conservador. Há especulações, há hipóteses, mas, à
exceção destes três factos, não há nada que se possa considerar historicamente
credível.
No entanto, pelos relatos verídicos que selecionou,
percebe-se que era contra a ganância e o desperdício, era muito crítico da política
portuguesa e económica da Época dos Descobrimentos e, indiretamente, explica
por que motivo o Império Português, tão promissor, acabou por se transformar
numa máquina perdulária, pesada, que nos levou à falência a todos os níveis:
social, económica, cultural, espiritual. De certa forma, Bernardo Gomes de
Brito é uma espécie de pré Antero de Quental: ele entendeu 100 anos antes o que
Antero, com o seu estudo Causas e decadências dos povos peninsulares, entendeu
nas famosas Conferências do Casino. Por isso mesmo, estes dois volumes são
bastante modernos para a época: longe de glorificarem a “nobre causa
Portuguesa”, deixam no leitor um gosto amargo na boca. Não se enganem: aqui não
há Lusíadas para ninguém. Bernardo não opina, simplesmente mostra,
relata, exemplifica. E isto torna a leitura não só mais
angustiante e mais acutilante, como se torna impossível negar o lado sombrio da
Época dos Descobrimentos. Reparem que ele não relata os casos de sucesso,
grandiosos, felizes. Ele guia o leitor para os casos que fizeram de nós uma
nação falhada. É quase como se fosse um cientista a elaborar uma prova
empírico/científica das causas da queda de Portugal. “Ah”, exclama o leitor,
“agora é que eu percebo porque é que nós, portugueses, somos hoje uns
pelintras. Foi por causa disto!”.
Como a língua portuguesa está sempre a mudar, António Sérgio
readaptou estes testemunhos num português mais “moderno” e mais acessível aos
leitores dos séculos XX e XXI. Nesta edição da Porto Editora – coleção Educação
Literária – são apresentados os cinco relatos mais famosos, entre eles o Naufrágio
de Sepúlveda (1552). O livro não só se lê muito bem, como ainda por cima, é
lindíssimo: está magnificamente ilustrado (os desenhos são de Jorge Mateus). É
uma pequena joia que se leva com prazer a todo o lado, porque nem sequer é
pesada.
Leiam com muita, muita atenção.
E aprendam a lição máxima: quem tudo quer, tudo perde.