terça-feira, julho 06, 2010

Exames Nacionais: O Gato E As Araras

 

Agora chegaram. Ouve-se uma voz a ler um manual inquisitorial de boas práticas. A clip_image001outra, mais desmaiada, ainda vai contando o gado que se instala. Nunca nos olham na alma, para não deixar sair a sapiência do verão. Estão encolhidos os escolhidos. Continuam as vozes.

-É expressamente proibido!

Assim como é proibido rabiscar ou decorar as folhas de exame. Nem mesmo uma flor, para adornar o fim prematuro de uma incursão, ainda que frenética, no reino da memória. Nem mesmo que ela esteja tão só a adornar a margem do escrito.

Outras vezes, parece que não lhe escolheram o nome correcto. Seriam enxames. Seria mais adequado, às circunstâncias. Enxames… sim… movimentam-se como enxames. Todos respeitam: o proibido.

-É proibido o uso disto…e daquilo…ou daqueles. Uma panóplia de crimes, prestes a serem uma vez mais desconhecidos.

Depois, entrariam as crianças, pelo armazém dentro, impulsionadas em ilusões. São, logo ali à entrada despidas de todos objectos “inúteis”.

-E o telemóvel, também é proibi…?

-É sim, é expressamente vedado o seu uso.

- Deixem tudo que não for necessário.

- É proibido, dizia ele.

-É proibido…

Continuava a escrever à “escapula” (com a vontade de ser apanhado) mas sem espaço para argumentar, perante eleitores desconhecidos.

- Não podem…já deviam saber, dizia ele. Não podem nada…

Quê? Agora só faltava que não pudessem pensar.

-Sim, pensar podem.

clip_image003Devem é ser pensamentos dentro dos moldes em que foram panificados. Que vergonha! Ao que chegou o ser humano. Não, ao que chegou esta nação…de navegadores. Pareceriam navegadores? Porém, a nau agora era outra. Tinha um porto bem encontrado, não iria…

-Vem aí alguém do secretariado…ou da inspecção!

Tenho de parar de escrever…porque é proibido agora, durante estes cento e vinte minutos, ou até, caso de cento e cinquenta.

-Basta seguirem as regras!

Enquanto os outros não chegam, delicio-me copiosamente a continuar a vê-los e a imaginá-los, aqui, na ponta do meu papel. Estou a transgredir o dogma: é proibido. Mas quem proíbe aquele gato de perseguir, maravilhado, as outras duas araras, que melodiosamente se enamoram, na área onde nada é proibido?

Mais um gatafunho, não sem aumentar as frequências com que rodo o pescoço e desloco a posição do olhar.

-Vem aí o secretariado. Vem aí a inspecção.

- E isso é proibido, já te disse, se te apanham.

O meu cúmplice repete a mesma frase, com os olhos e um leve movimento com a cabeça.

Ahaaaaaa…não ligo, não paro até chegarem. Que “pidesco” não é, esconder-me para ocultar a minha solidão dentro desta caixa de sabedoria. Continuo a ver as crianças, aqui neste contentor, afogadas em folhas de papel, a costurar, a um ritmo vertiginoso a peça que lhes há-de dar a salvação. O medo de se alhearem da prova de vida é tão líquido, que lhes foge pelas esfinges, e não, nem ousam erguer o rosto para ver o sorriso com que o gato persegue as araras. E elas que salpicavam sons agudos enquanto estremeciam as asas, sem voar, apenas se remexiam.

O gato saltitava e observava em silêncio, sem rodar o pescoço, de cabeça bem apontado para o sol, orgulhoso.

As araras viajam de galho em galho, livres…felizes de não terem de entrar. Não imaginavam elas que deste lado estavam as outras, só que estas não podiam mudar de galho, permaneciam agarradas àquilo que não era proibido, mudas, imóveis, silenciadas

-É proibido.

Sempre que as linhas em que caminhavam chegavam ao fim da página, permitiam-se um levantar de rosto, uma espreitadela lá para fora, à procura delas e do gato…mas depois aterravam de caras nas superfícies brancas e frias que iam mudando de cor à medida que as araras se afastavam do armazém.

Agora as folhas onde escreviam já tinham perdido a brancura. Tornavam-se sombrias. A minha solidão estava mais próxima do final. Eu a olhar para estas crias. Triste, bem barbeado, feito algoz, embrenhado de um espírito plano, continuava a olhar para elas.

Só me vêm à memória o gato e as araras. Foi pena a gato não nos ter visto aqui dentro.

Interrogava-me se teria sorrido para nós da mesma forma que o fazia com as araras.

Não era proibido, pois não?

arara

De: João Rodrigues

 

Imagens retiradas daqui e dali :

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