segunda-feira, março 01, 2010

Livro Da Semana

 

História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito

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Custa-nos bastante a acreditar mas, há cerca de duzentos anos atrás, os destinos de uma nação eram muitas vezes decididos não por via terrestre ou aérea mas por via marítima. Durante milhares de anos, as grandes guerras eram muitas vezes travadas em alto-mar e não através de aviões, bombas nucleares ou minas. Por isso mesmo, Portugal foi imensas vezes cobiçado: a sua ligação ao mar não só era uma porta para a riqueza como, melhor ainda, era uma excelente porta de entrada para o continente europeu.

Custa-nos bastante a acreditar mas, há cerca de duzentos anos atrás, a vida de marinheiro era tão terrivelmente perigosa que só os sonhadores, os desesperados e os criminosos é que desejavam fazer parte da tripulação de um navio. Muitos sofriam de doenças crónicas, envelheciam extraordinariamente depressa, quase não tinham dentes, viviam curvados e mirrados, a pele de um marinheiro assemelhava-se a um velho pergaminho e morriam muito cedo. Além disso, estavam completamente dependentes dos caprichos do clima: sem vento, o barco não se movia (chegavam a esperar dias para poderem largar velas e continuar a viagem), com vento a mais o barco podia virar e afundar-se, com tempestade à vista a morte era quase certa.

Todavia, esta existência selvagem de lobos capazes de enfrentar um monstro chamado “Mãe Natureza” tinha os seus apelos e o seu fascínio: era a única forma de se conhecer o mundo e de se poder ver civilizações perdidas ou imaginadas nas velhas histórias de encantar. Os relatos de um velho lobo do mar eram famosos e era bastante comum uma enorme multidão juntar-se à volta do velhinho idoso que viu o inimaginável e sobreviveu para contar a história. Não havia televisão nem cinema nem internet nem fotografias. A imaginação voava e cada pessoa escutava e entendia os testemunhos de um homem do mar segundo a sua vivência e as suas crenças. Um marinheiro era, acima de tudo, um sobrevivente e, por isso mesmo, tinha autoridade moral para dar lições de vida aos outros.

Custa-nos bastante a acreditar mas, no tempo do Titanic, os coletes e botes salva-vidas não eram obrigatórios, eram apenas um capricho ou benesse dos ricos proprietários dos cruzeiros. Bruce Ismay, o dono do Titanic, ainda hoje é fortemente acusado de negligência e ganância. Porém, foi um dos poucos empresários do seu tempo que se deu à “maçada” de gastar dinheiro em coletes salva-vidas para todos os tripulantes, incluindo os da terceira classe, uma atitude que, nesse tempo, era considerada “esquisita” aos olhos dos milionários, uma vez que a lei não os obrigava a tal cuidado.

Hoje, viajar de barco já não é um perigo. Sim, está bem, existem piratas e terroristas mas, tirando esse detalhe, é tão seguro como atravessarmos a estrada de uma cidade deserta. Os marinheiros de antigamente, fizessem eles uma viagem ao nosso tempo, fartar-se-iam de gozar com os “machos latinos” alourados e bronzeados, de pele acetinada de bebé, que se acham muito aventureiros e destemidos só porque compraram um barquito movido a motor diesel, apetrechado de uma mini-farmácia de prontos-socorros e de 557.979,6 bóias e coletes salva-vidas. Em suma: para eles, a vida marinheiro já não teria graça nenhuma e seria, como diz a personagem Ega d'Os Maias, uma sensaboria de rachar.

E, sim: custa-nos a acreditar mas, há mais de cem anos atrás, os jornalistas não existiam. Denunciar as injustiças, a corrupção, a fome, a má gestão de governos ou de empresas, crimes graves ou menos graves e todo o restante sofrimento na Terra não era uma profissão. Havia relatos, sim, mas estes não passavam de “pura carolice” de alguns curiosos da História. E, claro, sempre existiram os cronistas. Ora, no tempo em que os jornalistas não existiam, o nosso livro da semana é um dos mais importantes testemunhos históricos de toda a Humanidade. Trata-se de uma compilação de naufrágios reais, contados muitas vezes na primeira pessoa, ou seja, contados por sobreviventes que estiveram lá, viram tudo, assistiram ao horror e sofrimento de companheiros seus e, “milagrosamente”, escaparam da morte. Por isso mesmo, estas histórias tocam-nos profundamente: não são personagens inventadas, saídas da cabeça de um escritor. São seres humanos como nós, gente que tinha família, amigos, filhos, mulher, tinham as suas fés religiosas, os seus medos e superstições, os seus sonhos, desejos, tinham as suas desavenças com o vizinho do lado, tinham o seu cão ou o seu cavalo ou mula, a sua casita pobre e o seu rio, onde pescavam o almoço e o jantar para os seus. Terão sido felizes? Terão sido amados?

E todos eles já deixaram este planeta e foram esquecidos. Não lhes conhecemos os rostos e até a idade. Tudo o que resta deles é a memória de um sobrevivente, também ele esquecido no tempo. E se não fosse o meritório e valioso contributo de Bernardo Gomes de Brito, que se deu ao trabalho de compilar todos estes testemunhos, estes documentos históricos não teriam chegado nunca às nossas mãos.

A História Trágico- Marítima é, hoje, vista como sendo uma antítese d'Os Lusíadas: em vez de um Portugal grandioso, sábio e visionário, temos o Portugal do costume, mesquinho, negligente, megalómano, incompetente e corrupto. E, como sempre, para não variar, quem paga é sempre o “peixe miúdo”.

Mais de trezentos anos depois, este país parece não ter mudado nada.

E já que estamos a falar de vidas de marinheiros...

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