quarta-feira, maio 04, 2011

Livro Da Semana

 

Manual da Escuridão, de Enrique de Hériz

clip_image002 Como será nascermos cegos? Não conhecermos as cores, o rosto das pessoas que nós amamos, não sabermos qual é o aspecto de um gato ou de um cão, não sabermos qual é a forma de uma árvore, desconhecermos o pálido brilho da Lua, não sabermos que a água cristalina possui uma luz única. Ninguém sabe, a não ser os cegos. E nem mesmo eles conseguem explicar o seu mundo. Este é um mundo de cheiros, sons tacto e olfacto. Tornam-se os seus olhos, à falta “de melhor”. Para eles, é motivo de tristeza mas não de tragédia. Nunca conheceram outro universo senão este universo de sombras e escuridão. Estão habituados.

Porém…

Como se sentem aqueles que perdem a vista? Nunca mais verão um filme, nunca mais lerão um livro, nunca mais visitarão um museu, assistirão a um pôr-do-sol, nunca mais verão o brilho da água cristalina e o sorriso das pessoas que amam. Terão medo de atravessar a rua. E cada pedrinha no chão pode ser um obstáculo, pode ser motivo de hospital. Terão que reaprender a andar, vestir-se, comer, cozinhar sozinhos. Terão que reaprender a ler através de uma nova linguagem que se pressente nos dedos. Terão que “ver” de outra forma: através dos cheiros, dos sons, do sexto sentido.

E como se sentirá um mágico que repentinamente perde a vista? Os mágicos lidam com os olhos, pregam-lhes partidas. A ilusão de óptica faz parte do quotidiano destes artistas. A vista, para eles, é tudo. É a sua profissão, a sua razão de ser. Como os pintores, os seguranças, os bombeiros, os caçadores, os coreógrafos, os pilotos de avião, os cientistas. Porque há certos modos de vida que exigem mais a vista do que outros.

Eis o que acontece ao grande mágico Victor Losa: preso de uma cegueira irreversível, o seu processo de cura (que nunca será completo) será doloroso e violento: da revolta passará à negação, da negação passará à depressão, da depressão passará à resignação. E tudo começa a irritá-lo: repara que, na nossa linguagem, o verbo “ver” está sempre presente, nem que seja para dizer algo como “entender”, “cheirar”, “aprender”; repara nas ruas, que reflectem o desprezo escondido que a sociedade sente por eles; repara no tom da voz das pessoas, o tom do “coitadinho”, como se os aleijados fossem inferiores aos “outros”; continua a usar os seus óculos, mesmo que estes já não sirvam para nada; tenta matar-se; e depois aceita o seu destino, pisando um palco e sentindo-o, já sem o ver.

Não é um livro feliz. Mas é uma obra literária bastante humana. Os Humanos não conseguem (felizmente!) ler os pensamentos uns dos outros. Porém… O quanto nós aprenderíamos se pudéssemos fazer tal, nem que fosse por uma hora! Ora, a Literatura serve para isso mesmo: é um ler-o-pensamento-dos-outros. É entrarmos na mente das personagens e imaginarmos que somos deuses. É aprendermos um pouco mais da Alma Humana.

Inesquecível e musical, este é o livro da semana.

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