O Processo, de Franz Kafka
Qualquer pessoa que tenha estado atenta às eleições de ontem deve ter ouvido falar da “bronca” do Cartão de Cidadão: milhares de pessoas não conseguiram votar devido a um erro informático, que impediu que muitos votantes ficassem a saber o seu número de eleitor. E o número não disparou porque muitos Portugueses, teimosos mas pacientes, esperaram horas para aceder à base de dados. Houve pessoas que chegaram a esperar mais de duas horas, sempre a resmungar mas sem arredar pé.
Se acham que esta situação é escandalosa, há histórias ainda mais bizarras e mais estranhas. Há cerca de duas semanas, o jornal Expresso noticiou um acontecimento bem surrealista: uma família, durante o velório de um ente querido, descobriu que o morto não tinha os olhos. É que, graças a um “pequeno lapso” informático, o defunto estava dado como dador de órgãos… E não era ele. E, já agora, quem é que ainda não recebeu ou viu no facebook a notificação dos Serviços do Ministério Público de Lagos, a pedir que uma certa pessoa apareça na qualidade de falecido para, no prazo de dez dias, levantar o cartão requerido (se não acreditam, podem ver com os vossos próprios olhos aqui: http://www.calinadas.net/na-qualidade-de-falecido/)?
Quantas pessoas não podem cumprir o seu sonho por causa da falta do “papelinho”? Quantos serviços, entidades e escolas são entupidos por causa do excesso da papelada? Quantos inocentes não estarão na cadeia por causa de um “erro técnico”? Quantas vezes não fomos tramados por causa de um obscuro ofício ou decreto ou alínea? E a quantidade esmagadora de processos em tribunal, à espera de serem resolvidos? E a papelada que temos que preencher só para comprar uma casa? E a quantidade de homens e mulheres que não conseguem arranjar um emprego nem pedir um préstimo porque lhes falta o “papelucho” comprovativo de uma morada que não têm?
A burocracia é sufocante, asfixia toda uma nação e é autora de injustiças gritantes. E o mais estranho de tudo é que ninguém é apanhado, ninguém é responsabilizado, ninguém tem culpa. A Burocracia é um monstro sem rosto, sem humanos, sem culpa nem remorsos. É uma “coisa” que ali está e não se pode culpá-la nem apanhá-la nem enganá-la nem destruí-la. E é tão fácil, nos dias de hoje, destruir alguém por causa da falta ou presença de um papel!
Ora todas estas histórias bizarras já foram “profetizadas” pelo escritor Franz Kafka, na sua obra-prima O Processo: Josef K, a personagem principal deste romance, vai parar à cadeia sem sequer fazer a mais pequena ideia do que fez. Não sabe porque está lá, não sabe que crime cometeu, não conhece os seus acusadores, anda de sala em sala, de pedido em pedido, de relatório em relatório, e acabará por ser executado pela máquina da Justiça por um crime que não cometeu. E… Já agora… Se não for muito incómodo… Qual crime?
Escrito no ano de 1925, esta história de terror – não se lhe pode chamar outra coisa – de alguém que acaba assassinado sem sequer saber o que fez faz-nos lembrar sinistramente os relatos de muitos prisioneiros da prisão de Guantánamo, que foram presos nas suas próprias casas e à frente das suas próprias famílias sem que lhes fosse dada qualquer explicação ou razão porque tal estava a ser feito contra eles. Porém este cenário não ocorreu somente em países a milhares de quilómetros de distância do Brasil. Temos histórias de torturas na maioria dos países da América do Sul e, não diferente, no Brasil também. Principalmente na ditadura militar, várias famílias viram homens com “traje negro e justo” retirarem seus pais, filhos, maridos e esposas de suas casas, antes mesmo do café, para serem torturados por acusações que nem conheciam. Igualmente a história de Josef K.
A justiça é cega? É cega, sim senhora. É cega demais. É pesada, lenta, arrogante, megalómana, fechada em si mesma, ineficaz, incapaz de resolver os problemas que vão surgindo. E falha precisamente porque tarda, porque é excessivamente burocrática, porque segue protocolos inúteis e antiquados, porque não consegue adaptar-se aos tempos modernos. E quando anda de mãos dadas com o poder, a Justiça não é apenas incompetente, é, acima de tudo, perigosa.
No fim, os Josef K deste mundo são esmagados como se fossem baratas que passeiam distraidamente por cima de um gigantesco processo, esquecido numa bafienta e suja prateleira de um enorme armazém. A nós todos, zés-ninguéns do planeta Terra, só nos resta esperar na sala de espera, à espera de que um funcionário mal-humorado nos atenda como se lhe estivéssemos a fazer um grande favor. À espera, eternamente à espera, olhando o relógio, bufando.
E, sem repararmos, uma mão invisível enfiou-nos uma corda no pescoço.
O Processo (BookTrailer)
Citação retirada daqui
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