O Anjo Branco, de José Rodrigues dos Santos
Sempre que alguém menciona a palavra “África” há toda uma centena de sentimentos que mexem com o nosso raciocínio. Uns sentem desprezo por um continente eternamente pobre e que parece nunca mais ganhar juízo; outros sentem admiração por um continente que parece finalmente começar a mostrar sinais de querer sair de uma pobreza endémica, e que já está a aproveitar as oportunidades que vão surgindo de todos os lados; uns sentem um imenso fascínio por este lugar da Terra, onde tudo parece estar vivo e onde a Natureza é uma espécie de deusa presente e poderosa; outros sentem uma imensa nostalgia e saudades por uma África que já não existe ou, melhor dizendo, nunca existiu. Não importa o grupo com que nos identificamos, a verdade é que esta palavra provoca todo o tipo de sentimentos, mas nunca a indiferença.
O meu caso é muito pessoal: nasci em Angola e, graças à guerra civil, a minha família teve que fugir. Quase quarenta anos depois, ainda me lembro das terríveis e gloriosas tempestades, capazes de arrancar as árvores dos quintais dos meus vizinhos; lembro-me do cheiro e da cor da terra; lembro-me da temperatura, eternamente alta mas também carregada de uma imensa humidade em determinadas épocas do ano; lembro-me de um povo que, apesar da miséria, cantava e dançava ao mais pequeno pretexto; lembro-me da minha casa de infância, sempre com a porta no trinco, e os angolanos entravam e saíam sem pedir licença. Possuía a ingenuidade de todas as crianças felizes e achava que os “brancos” eram todos bons e puros como a minha mãe. Só muito, muito mais tarde é que conheci o lado escuro e sórdido da ditadura de Salazar e da maldade escondida que existia nos corações de muitos “senhores”. Para mim, Angola era o paraíso na Terra e todos os meus vizinhos tinham o coração cheio de amor para dar. Abençoada ingenuidade: ao menos tive aquilo que hoje se chama uma “infância normal”…
Não é para espantar, portanto, que este particular livro mexa comigo: este Moçambique recorda-me imenso o meu país de origem. José Branco, a principal personagem deste romance, lembra-me várias pessoas que cheguei a conhecer e que, através de pura e simples “carolice”, construíram escolas, hospitais, andaram de terra em terra e ajudaram, ainda que fosse pouco, uma pouca de gente que lhes ficou eternamente agradecida. Aliás, segundo o próprio autor deste romance, a personagem de José Branco teve como inspiração o seu próprio pai. Inspirei-me no meu pai: o romance conta a história de um médico que é punido pela administração colonial e enviado para Tete, um sítio perdido no coração de África conhecido por 'o cemitério dos brancos, afirmou numa entrevista. Ora, o herói da nossa história encontrou em Moçambique um sentido para a vida e tornou-se num “anjo branco”, ao decidir criar um serviço de Apoio Médico Aéreo e, desta forma, ajudar as populações isoladas que, muitas vezes, não tinham acesso a quaisquer cuidados médicos.
(…) e o médico que chega do céu vestido de branco transforma-se numa lenda do mato. Chamam-lhe o Anjo Branco.
Porque a bondade, nesse tempo, era uma bondade solitária, sem quaisquer apoios e prémios. Uma bondade partilhada por um pequenino grupo de gente bem-intencionada, muito à frente do seu tempo, capaz de ver para além do título, do prestígio social, da cor da pele. Umas migalhas de “anjos brancos” que, longe de esperarem por messias salvadores, arregaçaram as mangas e fizeram do pouco muito. E esta bondade, muitas vezes, foi esquecida no meio de incontáveis massacres e injustiças.
Não salvaram uma nação. Mas deixaram as sementes para que tal fosse possível.
Sandra Costa
1 comentário:
Este livro é realmente muito bom, tal como todos os que já li de José Rodrigues dos Santos. Dá-nos a conhecer as desigualdades existentes na época, em África, sendo, ao mesmo tempo, um óptimo romance. Sou uma fã de JRS :)
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