Frase Do Dia
Para o Homem, apenas há três acontecimentos: nascer, viver e morrer. Ele não sente o nascer, sofre ao morrer e esquece-se de viver.
Jean de La Bruyère, ensaísta e moralista francês
Hikikomori: O Medo Pavoroso Da Vida
Este é um dos fenómenos mais estranhos, mais bizarros e mais perturbantes dos tempos modernos: cerca de um milhão de jovens japoneses do século masculino decide pura e simplesmente fechar-se num quarto e nunca mais sair deste espaço. Comem, dormem, fazem as suas necessidades básicas (normalmente, o “quarto” significa uma cama, um computador, um armário e a casa-de-banho do lado) e chegam até a morrer ali. Não permitem a presença de ninguém, nem mesmo a dos próprios pais, que os estão a sustentar. Isolam-se do mundo, e a sua vida é dedicada a criar uma existência cor-de-rosa, cheia de literatura manga, jogos de computador, heróis e espadas Samurai, redes sociais, música rock e, por vezes, pactos de suicídio colectivo. Chamam-se hikikomoris, um termo que se pode traduzir por “Encerrar-se, fechar-se”.
É verdade que há muitos hikikomoris espalhados pelo mundo inteiro, mas este comportamento anti-social, que foi observado pela primeira vez nesta nação nipónica é, neste país, um verdadeiro flagelo social que debilita um número assustador de jovens, de tal forma que o governo japonês levou muito tempo a admitir que tinha um problema muito sério para resolver. Em mais parte alguma do planeta assistimos a um fenómeno com estas proporções tão preocupantes. Por isso mesmo, não demora muito para nos perguntarmos: porquê no Japão e como é que as coisas chegaram a este ponto?
São várias as razões que podem ter despoletado esta doença social: em primeiro lugar, ao contrário do que as pessoas pensam, a velha mentalidade Samurai ainda existe no Japão. “É preferível morrer com honra do que viver sem ela” foi sempre o grande lema destes extintos guerreiros, e os japoneses valorizam-na acima de tudo. Ainda hoje, neste país, o suicídio de honra é encarado como uma coisa nobre a virtuosa e não como um acto de cobardia ou de desespero. “Perder a face” é a pior coisa que pode acontecer a estes pobres seres humanos, e quem falha publicamente raramente merece uma segunda chance.
Pior ainda, a sociedade nipónica é uma sociedade colectiva, ou seja, o indivíduo não conta para praticamente nada. Os japoneses vivem em grupo, para o grupo, morrem em grupo (hoje já não é bem assim) e podem até morrer para “salvar a face” do grupo. Ora, quando um falha, falham todos. Por isso mesmo, as famílias destes hikikomoris escondem a sua vergonha, não contando nada aos vizinhos, aos amigos e até aos próprios membros da sua família. A mentira mais comum que usam, sempre que alguém lhes pergunta pelo filho, é dizer que este “está a trabalhar no estrangeiro”, mentira essa que resulta que nem ginjas, uma vez que ninguém o vê. O falhanço do filho é, portanto, uma mancha negra, uma nódoa para o clã inteiro. E, para salvar a honra “samuraica” deste, é preciso manter as aparências e mentir. Como devem calcular, esta mentalidade não nos ajuda nada a curar o jovem que claramente sofre de perturbações mentais e claramente precisa de ajuda psiquiátrica. Desta forma, toda uma família vive em constante sofrimento e está refém da depressão profunda do seu filho. Numa sociedade como a portuguesa, o pai arrombaria a porta do quarto, pregaria dois pares de estalos bem dados na cara do puto, os vizinhos ouviriam os berros da família e o catraio seria obrigado a ir à psicóloga. No Japão, pai e mãe sofrem em silêncio e não podem contar com a ajuda de ninguém.
Mais ainda, convém acrescentar que a sociedade japonesa é insuportavelmente exigente. Ao contrário dos latinos, que vivem a vida de uma forma despreocupada (até demais!), os japoneses têm que ser os melhores na escola e os melhores no local de trabalho. As “escolas do marranço” são uma constante neste país: miúdos que estudam 10 a 12 horas consecutivas durante dias e dias, para depois triunfarem nos exames e nos testes para a faculdade.
Para finalizar, os japoneses não podem mostrar emoções: não podem chorar, não podem ter ataques de raiva, não podem mostrar desejo sexual, não podem ser impulsivos, não podem levantar a voz no local de trabalho, não podem ter uma discussão acesa com ninguém, não podem, não podem, não podem. Se existe uma coisa que vocês não irão ver, se alguma vez visitarem o Japão, é um condutor a discutir com outro condutor ou alguém numa loja a exigir o livro de reclamações. E esta cultura auto-opressora está de tal forma entranhada no inconsciente colectivo que, sempre que um deles enlouquece, enlouquece com método e ordem e, ordeiramente, deixa o mundo exterior, para se encerrar num quarto para sempre.
Actualmente já existem programas de recuperação: as “Super Irmãs” são assistentes sociais que, cheias de boa vontade e boa disposição, conseguem pouco a pouco convencer os jovens a sair do quarto, conversar em grupo, ir ao cinema, ao centro comercial... enfim, ensinam-nos a voltar a viver. Pelo caminho, também ajudam a família inteira que, como devem calcular, está a necessitar como de pão para a boca de apoio psiquiátrico.
O mundo em que hoje vivemos tem de facto as suas coisas admiráveis. Porém, as novas tecnologias chegaram a um estado tal que um ser humano pode facilmente fechar-se numa casa e, a partir daí, viver a sua vida. Tudo pode ser comprado na Internet: comida, roupa, divertimento, pagar as contas do mês. Podemos trabalhar em casa, podemos fazer amigos no aconchego da nossa casa, podemos evitar toda a gente e encerrarmo-nos no nosso castelinho cor-de-rosa. O mundo que a Internet nos ofereceu é quase perfeito. Mas não abafa o sofrimento interior e a solidão.
Vejam agora este lindíssimo e tristíssimo vídeo da autoria de Jonathan Harris.
Hikikomori: Alguém se importa
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