Corria o ano de 1816, quando a grande ópera cómica (mais conhecida por opera buffa) O Barbeiro de Sevilha foi estreada em Itália. E, de um momento para o outro, o compositor Giachomo Rossini, que até então tinha tido azar com as suas encenações (péssimos actores, cenários a cair aos bocados, cantoras de voz esganiçada)... continuou a ter ainda mais azar. Reza a lenda que o público vaiou, insultou, gritou, cadeiras voaram pelos ares, houve risadas durante todo o espectáculo e os muitos rivais do compositor, que se enontravam infiltrados no público, fizeram tudo e mais alguma coisa para desestabilizar ainda mais a pouca sorte deste pobre homem. Mas Deus estava do lado de Rossini, e à segunda foi de vez: a segunda performance já recebeu a atenção dos espectadores e acabou em glória.
Ora, é precisamente nesta ópera que nós podemos escutar a famosa ária La Calunnia (Ária é o nome que nós damos a uma pequena canção inserida numa ópera, pode ser retirada da mesma e cantada isoladamente). Nesta pequena joiazinha, faz-se, segundo a opinião de muita gente, a melhor descrição que alguma vez na vida foi feita acerca da palavra calúnia:
A calúnia é uma brisa,
um sopro leve muito gentil que,
despercebido,
subtil,
ligeiramente,
docemente,
começa a sussurrar.
De início lentamente,
em murmúrios,
sibilante,
vai rastejando,
vai rodando;
na mente da gente
e a cabeça, e os nervos
aturde e inflama.
Em desordem vai saindo,
em desordem vai crescendo,
faz-se forte pouco a pouco,
voa já de um lado ao outro;
como um trovão,
uma tempestade que,
no centro do bosque,
agita o ar,
chirria e de horror o sangue te gela.
No fim,
transborda e estoura,
propaga-se,
redobra-se
e produz uma explosão,
como um tiro de canhão,
um terramoto,
um temporal,
um tumulto geral,
que faz o ar ribombar.
E o pobre caluniado,
aviltado,
pisado,
flagelado por toda a gente,
com tal azar, soçobra.
(libretto da autoria de Cesare Sterbini)
Isto não vos faz lembra nada? Pois sim, quantos actores, escritores, músicos, poderosos, vizinhos do lado e colegas de trabalho não viram a sua vida e as suas carreiras destruídas por uma coisa tão pequena e mesquinha que, começando como um “simples” e “inofensivo” boato, atingiu proporções doentias e cruéis? Pois é, todos nós já conhecemos um exemplo assim ou, pelo menos, já ouvimos falar de um. E o pior de tudo é que, uma vez instalado, dificilmente poderá ser desmentido.
Por isso mesmo, quase duzentos anos depois, esta ária continua a ser tristemente actual. Mudam-se os tempos, já ninguém anda de peruca e de coche, mas a maldade humana continua a ser irremediavelmente a mesma...
Agora ouçam a deliciosa “canção”...
A Calúnia (em O Barbeiro de Sevilha, de Giachomo Rossini)
Baixo-Barítono Valerian Ruminski (primeira imagem):
Cartaz do Barbeiro de Sevilha:
Tradução retirada de:
2 comentários:
Uma boa definição, e a canção é linda.
Obrigada :)
Lindo, lindo, lindo!
Já que andam numa de árias, experimentem «Rainha da Noite» da Flauta Mágica, por Diana Damrau. Simplesmente divino!
Enviar um comentário