A Cidade E As Serras, de Eça de Queirós
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. E assim começa esta grande obra da literatura mundial: falando de um homem insuportavelmente rico, penosamente rico, felizardamente rico, podre de rico, respirando riqueza por todos os lados.
Tão rico, que se pode dar ao supremo luxo de se dedicar às grandes sabedorias: a Ciência, a Cultura, o prazer de ler, de investigar, de estabelecer relações sociais muito importantes numa cidade fervilhante de vida, que foi sempre Paris. Para Jacinto, as grandes metrópoles são o triunfo da Humanidade. O campo, esse, aterroriza-o, pois fica com a sensação de viver como os bichos, de descer à triste condição de ser animal.
Até que Zé Fernandes, o Narrador da nossa história, tem que se separar do seu grande amigo. Tem que voltar à sua terra, cuidar de familiares. E sete anos depois, reencontram-se em Paris.
Aparentemente, parece que está tudo bem: a mesma moradia de Jacinto continua imponente, o luxo é o mesmo, os costumes são os mesmos. Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito fundas, como as dum comediante cansado. Os anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode, murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.
E, estranho!, Jacinto estava aborrecido, aborrecidíssimo. Por mais brilhantes que fossem as descobertas científicas, por mais brilhantes que fossem as discussões à mesa e nos saraus culturais, tudo era “uma seca”, “uma maçada”, um tédio de roer as entranhas do nosso corpo.
Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo:
-Jacinto anda tão murcho, tão corcunda… Que será, Grilo?
O venerando preto declarou com uma certeza imensa:
-Sua Excelência sofre de fartura.
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris (…).
Até que, um dia, Jacinto vai ter que enfrentar o seu grande terror: passar uma pequena estadia “nas serras”, mais especificamente em Tormes (foto à esquerda). Ah, a boa, velha e salutar vida do campo…
A Cidade e As Serras é uma das mais belas homenagens à civilização mais saudável e quase sem artifícios que é a vida fora das grandes cidades, subúrbios e populações de periferia. Para quem não sabe, este livro não passou do desenvolvimento de um dos contos mais populares de Eça de Queirós: o conto Civiliação.
Eça de Queirós, através do louvor a uma existência simples, descomplexada e muito mais sincera, pretende criticar o mundo louco do “Homem Moderno”, asfixiado por todo o tipo de ideais e máquinas, e completamente dependente de tudo e todos. Zé Fernandes representa o homem simples (mas não simplório!), que valoriza os pequenos nada que tornam a vida perfeita, ao passo que Jacinto esgota lentamente a sua alma em Paris, cidade esta que, por muito fascinante que seja, descaracteriza o ser humano e afasta-o daquilo que é realmente importante neste planeta: a família, os amigos, o amor, e a empatia com todas as formas de vida que co-existem com o ser humano.
Mas isto não quer dizer que Jacinto se transforme num “campónio”, e se esqueça de Paris: ao chegar a Tormes, a nossa personagem leva consigo ideias construtivas, que podem aliar a saúde e boa disposição das “serras” com o progresso inovador e útil da “cidade”. No fim, ficam todos a ganhar…
Se Jacinto tivesse vivido no século XX, teria gostado de ler O Papalagui!
Fotos retiradas de:
1 comentário:
É um livro totalmente maravilhoso que se lê e relê e se volta a ler...
Lyta
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