As Velas Ardem Até Ao Fim, de Sándor Márai
Há certos livros que não nos pertencem, nós é que lhes pertencemos enquanto viramos as páginas ou clicamos no ecrã do nosso ipad, para podermos continuar a história. Há certos livros que respiram sozinhos. Há certos livros que, à semelhança da História Interminável, possuem um coração pulsando, por entre as veias chamadas palavras.
Costuma-se dizer que uma obra que nunca foi lida é uma obra que nunca foi escrita. Todavia, isto não é bem verdade: o livro, no escuro de uma sala ou de um baú lá nos aguarda pacientemente. Pode esperar 100, 200, 500, 1000 anos até que alguém dê com o mesmo numa secção perdida de uma biblioteca ou um sótão fechado, nunca verdadeiramente visitado. Mas ele aguarda-nos, respira, espera pelo dia em que alguém folheie as suas palavras. Foi o que aconteceu com muitos leitores de todo o mundo, que só tomaram conhecimento do escritor Húngaro Sándor Márai quando o muro de Berlim, no ano de 1989, ruiu em festa e alegria. Meses antes, completamente deprimido, Márai dissera adeus ao mundo e acabara com a sua própria vida.
Sándor Márai foi odiado e desprezado pela elite supostamente intelectual do regime comunista de então. Amaldiçoado, os seus livros foram proibidos e o mundo, durante décadas, desconheceu a sua existência. Márai falava da realidade, da dura realidade. Falava de uma classe burguesa/aristocrática decadente, falida, já sem prestígio, charme e poder. Falava das cinzas de uma Europa cristalizada no tempo, e que em três tempos foi varrida por duas guerras mundiais. Falava de um mundo de fantasmas que não tinham a consciência de estar mortos. Falava da gigantesca crise existencial de famílias outrora influentes e agora esvaziadas de poder e de dinheiro, mas tentando de todas as maneiras manter a sua reputação intocável. Falava do desespero das mulheres sensíveis que sonhavam com a liberdade e a independência, presas ao piano, às aulas de Francês e à etiqueta e boas maneiras.
E o livro desta semana fala precisamente de tudo isto: em tempos que já lá vão, o castelo de caça que este livro retrata foi um esplendoroso lugar para festas e saraus. A gente fina e abastada (ou a fazer de conta que) passava lá a vida intrigando, escutando as últimas coscuvilhices, passeando pela imensa propriedade, namoriscando o pretendente do lado. Ouvia-se música, recitava-se poesia, cantava-se ópera. Hoje, tudo terminou e os opulentos salões decorados ao estilo francês estão gastos, decadentes, roídos pela traça do tempo. É precisamente neste lugar que dois amigos de longa data se reencontram.
O serão não vai ser divertido. Vai ser uma longa, longa noite em que o ódio, o rancor, a traição, a compaixão, o poder da música como força libertadora e as memórias do passado irão encher este castelo escuro e frio, que já nenhuma lareira consegue aquecer. São duas vozes de uma Europa já desaparecida, dois homens vindos de duas classes diferentes que, milagre dos milagres, conseguiram ser amigos e, tristeza das tristezas, separaram-se por causa de uma mulher. O general destila vingança, quer saber de tudo, quer vingar-se, quer tudo em pratos limpos.
E a noite arrasta-se, as confissões finalmente saltam da boca de cada um deles, e a verdade surge. Crua, violenta, objectiva, emocionante. Como aliás, são todas as verdades. Entretanto, as velas azuis vão ardendo, ardendo, ardendo, como se acompanhassem os dois amigos, como se os guiassem, como se os aconselhassem. Lentamente, vão ardendo. E arderão até ao fim.
Há pessoas que vivem tanto tempo mergulhadas na tristeza que, repentinamente, têm pressa de morrer. Tivesse esperado mais uns meses, e Sándor Márai teria recebido o prémio Kossuth em 1990, no meio de palmas e de gente a aplaudir de pé. Em vez disso, alguém subiu ao palco por ele. As velas ainda ardiam para ele. Não foi capaz de esperar por elas.
Por vezes, até uma trémula luz é insuportável.
Imagem retirada de:
http://olhares.aeiou.pt/as_velas_ardem_ate_ao_fim_foto3239731.html
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