O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Robert Louis Stevenson
A história começa logo de uma maneira bastante estranha: dois impecáveis e irrepreensíveis cavalheiros ingleses, daqueles que nunca se irritam, que nunca mudam de expressão e que são a perfeita caricatura do Englishman sem pecado nem mácula, decidem dar um passeio num pátio antigo, cheio de moradias pitorescas. É então que um deles aponta para uma porta vinda de uma casa sinistra a cair aos bocados e conta ao seu amigo o que testemunhou numa noite: uma menina chocou por acidente com um homem, e este, sem qualquer dó nem piedade, espancou-a e pisoteou-a com incrível brutalidade.
Não demorou muito para que um grupo de homens e mulheres saísse à rua para saber o que se passava. Enfield (o cavalheiro que está a contar a história) chamou um médico e, enquanto esperava por ele, ameaçou-o com a desgraça pública. Disse que lhe arruinaria a sua vida se aquela aberração humana não tentasse pelo menos compensar a família da criança pelo que fez. O mais bizarro de tudo residia no facto de esta criatura provocar em todos um ódio quase incontrolável. Nunca vi um círculo de caras tão indignadas: e o homem no meio, com uma espécie de indiferença zombeteira (amedrontado, todavia, como notei) mas orgulhoso, meu caro amigo, como Satanás. Mas o Sr. Hyde, como se chamava, entrou por aquela porta e saiu com um chorudo e milionário cheque de 90 livras (bastante dinheiro para a altura).
A história não acaba aqui: o cheque foi pago por um prestigiado e muitíssimo respeitado médico da cidade. Por que motivo haveria um ser humano tão admirado pela sociedade de proteger um monstro que espanca crianças sem qualquer compaixão? Que relação existia entre estes dois homens? Chantagem? Alguma “asneira” que Dr. Jekyll terá cometido nos seus estouvados anos de juventude, e agora estava nas mãos deste psicopata? Mas, e isto era ainda mais estranho, aquele homem monstruoso continuava a ter a chave de acesso para aquela casa. Entrava e saía quando queria... Que mistério existia por detrás disto tudo? O melhor, concluem os dois amigos, é nem pensar no assunto, é respeitar a privacidade do distinto médico.
Mas isto não quer dizer que Enfield deixe de ficar com a pulga atrás da orelha: assim que sabe que o seu grande amigo Dr. Jekyll tenciona passar, em testamento, toda a sua fortuna para essa sinistra criatura, juntou dois mais dois: aquele homem perverso e sórdido conhece algum segredo bastante desagradável do seu amigo de longa data e tenciona usá-lo para lhe roubar a fortuna toda. É então que decide fazer as suas próprias investigações. Mas o que irá descobrir estará para além do que alguma vez na vida foi capaz de imaginar...
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde é considerada uma das “obras psicológicas” mais extraordinárias da História da Humanidade: até que ponto nós estaremos dispostos a erradicar o “mal” que existe dentro de todos nós e, acima de tudo, de que maneira o poderemos fazer? Escrito no século XIX numa Londres horrivelmente conservadora e religiosa (os Ingleses naquele tempo eram tão esquisitos e tão torcidos, que chegavam a tapar os pés das mesas com uma longa toalha, porque mostrar “as pernas” daquele objecto era uma coisa indecente!), este livro aborda, acima de tudo, duas coisas: o desejo de sermos livres e a culpa que essa liberdade nos pode trazer. De facto, os Ingleses do século XIX (a famosa e sinistra Época Vitoriana) sentiam culpa a toda a hora: culpa de sentirem desejo sexual; culpa de sentirem emoções como o riso, a raiva ou o amor; culpa de serem seres humanos, cheios de falhas. E sentiam vergonha do seu corpo e da sua consciência. Acima de tudo isto, existia o “Castigo Divino”: Deus via tudo, Deus condenava todos os que falhassem, as fornalhas do Inferno estavam sempre acesas para toda a eternidade. Numa sociedade como esta, não seria óptimo conseguirmos arranjar uma maneira de pecarmos sem sentirmos culpa ou vergonha? Neste livro, tal é, sem dúvida, possível. Mas o preço que Dr. Jekyll pagará pela sua descoberta destruirá a sua sanidade e a sua vida.
Ninguém consegue erradicar o “mal” que existe dentro de nós. O máximo que podemos fazer será aprendermos a lidar com ele, aprendermos a controlá-lo, ao mesmo tempo em que desenvolvemos o nosso “lado luminoso”. E não existe receita secreta para criar homens bons, a não ser darmos aos nossos filhos muito amor, paciência, empatia e autoridade na medida e quantidade certas. Esta obra literária deixa-nos, portanto, um aviso: a repressão, o medo, a culpa e a vergonha não criam cidadãos mentalmente sãos, criam monstros que espezinham crianças numa noite fria de Inverno.
Não vamos contar o fim, pois não sabemos se o/a leitor/a já leu este livro. Mas se nunca o leu ou nunca ouviu falar desta história, prepare-se para uma grande, grande surpresa.
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