As minhas memórias dos tempos da revolução cingem-se a um período eufórico, de uma tempestade febril de emoções. A música andava à solta e eu própria numa idade em que os vocábulos despontam de vontade de dizer coisas, lá trauteava a Grândola Vila Morena. A consciência da importância político-social veio mais tarde. Pouco aprendi nos manuais de história sobre este período, a matéria aparecia envergonhada nas derradeiras, últimas folhas do livro escolar. Na génese, existiam ideologias de fundo e nos anos 80 havia ainda alguns pruridos em documentar o facto como uma viragem de uma ditadura para um regime de expressão democrática.
Mais do que uma revolução politica (a coisa era iminente), o que perdura na memória das pessoas de trinta anos que não viveram o antes e o depois foi o legado de uma nova corrente cultural rica nas vertentes musical, literária-poética, plástica e nos movimentos sociais de contestação ao regime, que tinham lugar nos círculos académicos e em grupos mais politizados.
Com Abril, surgiram importantes mudanças. A dessacralização de patamares de escolarização em função da classe social de referência deu lugar a sucessivas gerações de pessoas mais escolarizadas e informadas. O estado laico (sem contaminações de valores religiosos) trouxe alterações profundas a nível social. A integração de Portugal no mapa da Europa trouxe constrangimentos e oportunidades, mas sobretudo pôs os portugueses mais a par do que se passa nos outros países e também, do nosso tamanho real.
Abril chegou com um cheiro de promessas, de o fim de uma era. Mas sobretudo trouxe um referencial de direitos cívicos, de apelo à opinião individual, de participação pública no interesse comum e de que as mudanças podem acontecer num colectivo de vontades.
A pedido, escolhi alguns versos alusivos ao 25 de Abril.
De: Helena Guerreiro
ABRIL
Brinca a manhã feliz e descuidada,
como só a manhã pode brincar,
nas curvas longas desta estrada
onde os ciganos passam a cantar.
Abril anda à solta nos pinhais
coroado de rosas e de cio,
e num salto brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul num assobio.
Surge uma criança de olhos vegetais,
Carregados de espanto e de alegria,
E atira pedras às curvas mais distantes
-onde a voz dos ciganos se perdia.
EUGÉNIO DE ANDRADE
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
MANUEL ALEGRE
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