1808, de Laurentino Gomes
É mesmo caso para dizermos: contado, ninguém acredita. Esta história – que é verdadeira – mais parece uma novela mexicana ou, melhor ainda, um filme de Emir Kusturica repleto de gangsters, caos generalizado, corrupção, muitas gargalhadas, luxo a escorrer pelas quatro paredes de uma casa e tiros por todos os lados. E, no entanto, voltamos a dizê-lo, esta história é verdadeira.
A começar pela própria Família Real: D. João VI era um homem cobarde, eternamente indeciso, preguiçoso, cheio de manias e de “picuinhices”, não se lavava, a sua roupa estava tão suja e sebosa que se parecia mais com um mendigo do que com um rei e fartava-se de comer a partir do momento em que saía da cama. A rainha, Carlota Joaquina era inteligente, hiperactiva, irascível, tinha a mania das grandezas, adorava o luxo e o dinheiro, era traidora (conspirou cinco vezes contra o próprio marido) e violenta. Quanto à mãe de D. João… bem, essa era louca varrida, de tal forma que foi dada como interdita e quem governava (supostamente…) Portugal era o “príncipe regente”, ou seja, D. João.
Ora, no ano de 1807, Napoleão decide fazer um ultimato a Portugal: ou a Família Real portuguesa entrega-lhe o comando do país e ajoelha-se perante o seu poder, ou a Dinastia de Bragança terminará os seus dias. Já do outro lado, a Coroa Inglesa promete que irá proteger D. João VI… desde que obedeça aos seus desejos. Pois bem: que fez o nosso corajoso e bravo rei? Como diz o povo na sua infinita sabedoria, “deu de frosques” para o Brasil. Vocês bem podem imaginar a total estupefacção do povo português, quando viu dezenas de naus carregadas de livros, comida, dinheiro, jóias e toda a família Real e Corte pisgarem-se de mansinho, pela calada, com uma rainha louca a dizer a verdade aos berros, diante da multidão atarantada: “não andem tão depressa, que assim eles pensam que nós estamos a fugir!”. A pressa de sair de Portugal foi tal que centenas de malas, carregadas de livros e de jóias, ficaram no porto, para grande satisfação dos invasores franceses. O nosso rei era Absolutista, isto é, todo o poder do país estava nas suas mãos, e sem ele, Portugal pararia. Concluindo: na manhã de 29 de Novembro de 1807, os Portugueses foram literalmente “abandonados às feras” e, sozinhos, tiveram que se desenvencilhar como podiam.
Como é que é possível que um rei tão cobarde, tão indeciso e tão preguiçoso tenha sido uma peça-chave indispensável na criação desta gigantesca nação que hoje conhecemos pelo nome de “Brasil”? É que, vendo bem as coisas, se D. João VI foi um péssimo rei português, por outro lado foi um excelente governador nas terras do Samba: em apenas dez anos, o Brasil deixou de ser um amontoado de colónias pré-históricas e miseráveis e passou a ser uma nação com capacidades para tomar conta de si mesma e de se tornar independente (e como nós bem o sabemos, foi isso mesmo que aconteceu). Odiado – e com toda a razão! – pelos Portugueses, D. João foi muito amado e muito respeitado pelos Brasileiros. Construiu escolas, hospitais, pavimentou ruas e casas, instituiu normas de higiene e de saneamento básico, abriu universidades, abriu as portas para o mundo das Ciências e das Artes (pelo menos, tentou…) criou frotas brasileiras, introduziu o tão desejado comércio nacional (esta colónia estava proibida de produzir o que quer que fosse…), abriu um banco e introduziu pela primeira vez a moeda brasileira, etc, etc, etc.
Cobarde ou “espertalhão”? Raposa manhosa ou “medricas”? Bom rei ou mau rei? Só lendo o livro é que chegamos às nossas próprias conclusões. É que ainda hoje esta personagem histórica é polémica. Esta Edição Juvenil Ilustrada (poderão comprar a versão oficial e mais detalhada em qualquer livraria do país) é soberbamente divertida, de rir até às lágrimas, e está deliciosamente ilustrada. Laurentino Gomes descreve com mestria a viagem da família real por via marítima durante mais de dois meses (imperdível!), o Rio de Janeiro de então, os costumes e o caos de uma cidade que, antes de D. João, era quase uma mata abandonada, à mercê da sujidade, da criminalidade e dependendo da mão-de-obra escrava (um em cada três brasileiros era um “objecto” e não um ser humano). Escrito por um brasileiro, este livro pretende ser uma homenagem a um rei cobarde que criou, numa simples década, um país inteiro e deu-lhe “pernas para andar”.
Lá que este episódio histórico é muito estranho, ninguém o nega. De qualquer forma, Napoleão Bonaparte, antes de morrer, escreveu nas suas Memórias, referindo-se a D. João VI: foi o único que me enganou.
E isto já nos diz alguma coisa.
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