O Deus das Pequenas Coisas, de Arundhati Roy
Se vocês acham que os livros já não são objectos para serem temidos, sugiro que dêem uma espreitadela só aos últimos dez anos: desde o Caim de José Saramago até Gomorra de Roberto Saviano; desde o Quem Quer Ser Bilionário de Vikas Swarup até Descascando a Cebola, de Günter Grass; desde A Desilusão de Deus de Richard Dawkins até ao inenarrável Segredo; a verdade é que os livros estão de boa saúde, recomendam-se e até são capazes de derrubar governos e entidades poderosas, são capazes de mudar as nossas vidas e a percepção que temos do mundo. Por isso mesmo,
ler é ainda hoje um acto anti-social, que está associado à rebeldia e ao livro pensamento.
Ora, O Deus das Pequenas Coisas é um desses grandes exemplos. Escrito em 1997, esta belíssima obra-prima da literatura mundial criou um vendaval na Índia, onde falar do sistema de castas é o mesmo que insultar os deuses criadores das estrelas e dos Homens. E foi lido com sofreguidão: homens, mulheres e até crianças foram vistos nas ruas, nos autocarros e nos bancos dos jardins ou mercados a devorar as páginas deste romance de amor ou então foram vistos a ler para uma multidão de analfabetos. A recepção na Índia foi motivo de espanto no mundo dos Ocidentais e motivo de embaraço para as autoridades indianas. É que este livro fala do amor mais proibido que existe no planeta: apaixonarmo-nos por alguém que pertence a uma etnia diferente.
Há que deixar bem claro que “Classe Social” e “Sistema de Castas” não são a mesma coisa: se alguém nasce Pária ou Intocável – isto é, pertence ao escalão mais baixo dos seres humanos – então é porque esta pessoa, na vida passada, foi um monstro que torturou, matou, violou, roubou e, por isso mesmo, merece viver esta nova vida a recolher os excrementos das ruas, e nem sequer podemos tocar na sombra deste pobre humano porque a própria sombra é suja como a sua alma. Por outro lado, se nascermos Brâmanes – o escalão mais alto da Humanidade – fomos santos e heróis na vida passada, fomos pessoas extraordinárias e, por isso, merecemos ser ricos, felizes e socialmente poderosos. Cada casta está literalmente proibida de se misturar com a outra, nem que seja a mais próxima. Se o fizermos, estamos a entrar em choque com as forças do Cosmos e dos deuses, estamos a desequilibrar a Ordem do Universo. Todo e qualquer casal que tente fazer isso será linchado pelas próprias famílias.
Felizmente as coisas estão a mudar. A Índia já está a ficar muito ocidentalizada e já se vê nas grandes cidades misturas entre membros de várias castas. É verdade que os casamentos são muitíssimo poucos, porque o nojo de tocarmos em alguém que não pertence ao nosso grupo já existe há centenas e centenas de anos, e não é de um momento para o outro que um preconceito desaparece. Porém, a esmagadora maioria dos indianos apoia e preserva este racismo e não tolera a mudança.
O Deus das Pequenas Coisas fala de uma Índia a caminho da mudança e do imenso peso que o preconceito dita as nossas vidas e decisões, por muito que juremos a pés juntos de que somos muito modernos. O amor proibido de Ammu, mulher maldita por ser divorciada, e Velutha, o líder dos Intocáveis, irá desencadear uma explosão de ódio, intolerância e sofrimento numa família que supostamente afirmava ser muito progressista e liberal.
E por que motivo este livro tem um título tão enigmático? O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre em controlo. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos, explica Roy. Num mundo cruel, espartilhado, rígido e sem sentido, só as crianças conseguem ver as coisas como elas realmente são, só as crianças e os animais possuem um olhar límpido e inocente, sem essa nódoa pestilenta chamada “Civilização”.
Só as crianças conseguem ver as coisas como elas realmente são: homem, mulher, bebida, água, comida, riso, choro, árvore, cão, gato.
Amor.
1 comentário:
Excelente crítica, muito bem construída. Já li este livro e acho-o sublime. Graças ao Deus das pequenas coisas ainda há escritores que sentem a necessidade de tocar nas feridas sociais e chamar as coisas pelos seus nomes. Sem eles o livre pensamento deixará de existir.
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