quinta-feira, março 24, 2022

Livro da Semana - História Trágico-Marítima, adaptação de António Sérgio

 

Já foi leitura obrigatória nas escolas portuguesas, depois não foi, depois voltou a ser, depois não foi, depois voltou a ser… Por que motivo insistimos tanto num livro que já não tem nada a ver com um século XXI que é mais digital do que orgânico, e está mais ligado aos caminhos aéreos do que marítimos?

Ou será que esta compilação é mais contemporânea do que pensamos?

Todos estes relatos de naufrágios do século XVI foram compilados no século XVIII por “um tal” Bernardo Gomes de Brito. Não sabemos nada dele, a não ser três coisas: era um homem muito erudito/culto (provavelmente devia ter “sangue azul”); foi ele quem arquivou uma série de relatos de testemunhas de naufrágios em dois volumes, dando mais tarde o título acima mencionado; provavelmente nasceu em 1688 e provavelmente morreu em 1760. É tudo. Não lhe conhecemos o rosto, não sabemos se casou, se teve filhos, se foi feliz, se vivia na Corte ou viajava muito, se vivia em Portugal ou fora dele, se era progressista ou conservador. Há especulações, há hipóteses, mas, à exceção destes três factos, não há nada que se possa considerar historicamente credível.

No entanto, pelos relatos verídicos que selecionou, percebe-se que era contra a ganância e o desperdício, era muito crítico da política portuguesa e económica da Época dos Descobrimentos e, indiretamente, explica por que motivo o Império Português, tão promissor, acabou por se transformar numa máquina perdulária, pesada, que nos levou à falência a todos os níveis: social, económica, cultural, espiritual. De certa forma, Bernardo Gomes de Brito é uma espécie de pré Antero de Quental: ele entendeu 100 anos antes o que Antero, com o seu estudo Causas e decadências dos povos peninsulares, entendeu nas famosas Conferências do Casino. Por isso mesmo, estes dois volumes são bastante modernos para a época: longe de glorificarem a “nobre causa Portuguesa”, deixam no leitor um gosto amargo na boca. Não se enganem: aqui não há Lusíadas para ninguém. Bernardo não opina, simplesmente mostra, relata, exemplifica. E isto torna a leitura não só mais angustiante e mais acutilante, como se torna impossível negar o lado sombrio da Época dos Descobrimentos. Reparem que ele não relata os casos de sucesso, grandiosos, felizes. Ele guia o leitor para os casos que fizeram de nós uma nação falhada. É quase como se fosse um cientista a elaborar uma prova empírico/científica das causas da queda de Portugal. “Ah”, exclama o leitor, “agora é que eu percebo porque é que nós, portugueses, somos hoje uns pelintras. Foi por causa disto!”.

Como a língua portuguesa está sempre a mudar, António Sérgio readaptou estes testemunhos num português mais “moderno” e mais acessível aos leitores dos séculos XX e XXI. Nesta edição da Porto Editora – coleção Educação Literária – são apresentados os cinco relatos mais famosos, entre eles o Naufrágio de Sepúlveda (1552). O livro não só se lê muito bem, como ainda por cima, é lindíssimo: está magnificamente ilustrado (os desenhos são de Jorge Mateus). É uma pequena joia que se leva com prazer a todo o lado, porque nem sequer é pesada.

Leiam com muita, muita atenção.

E aprendam a lição máxima: quem tudo quer, tudo perde.

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