quarta-feira, outubro 23, 2019

Livro(s) da Semana Os Jogos da Fome, Suzanne Collins

Livro(s) da Semana
Os Jogos da Fome, Suzanne Collins

E voltamos à mesma questão que foi colocada na semana passada: uma vez que esta trilogia literária já foi transformada em filme, por que motivo ainda vale a pena (re)lê-la?

Existe atualmente um problema muito sério para o mundo da Literatura: a partir do momento em que um livro é transformado em filme, deixa de ser lido. De facto, Tolkien vendeu os direitos da trilogia Senhor dos Anéis a Hollywood porque ele acreditava plenamente que esta saga seria “infilmável”, por isso morreu em 1973 sem se preocupar com tal possibilidade. Mal ele sabia que, dez anos depois, uma coisa chamada “Computador Pessoal” iria radicalmente transformar o mundo, e cenas “infilmáveis” como a fuga de Moria e o confronto com um Balrog iriam tornar-se realidade, no século XXI. Hoje, esta fantástica trilogia – que estava sempre a voar das prateleiras – está a ganhar pó nas estantes. Os filmes chegaram, os livros morreram.
Foi precisamente esta mesma maldição que “matou” a trilogia de Suzanne Collins: ainda antes do seu universo criar raízes - clubes de fãs, uma geração inteira a passar testemunho para os seus filhos e netos - foi logo passada para o grande ecrã. Mal teve tempo para amadurecer e foi rapidamente transformada em Marketing e Franchise. As grandes sagas de hoje não conseguem fundar alicerces, ao contrário das grandes criações e heróis do passado, como Sherlock Holmes, o mundo de Dune, O Senhor dos Anéis, Star Wars ou Star Trek. A última grande obra-prima imaginária que ainda conseguiu tal proeza foi a saga de Harry Potter. A partir daí, foi o fim. Não há TEMPO para a maturidade, a discussão, o debate, a análise, a homenagem. Tudo é tratado como uma esfregona descartável: usa-se, fica velha, deita-se fora. E, muito pelo contrário, os filmes não são maus e respeitaram esta trilogia. Infelizmente, também a “mataram”.
Vamos ter que esperar 20 ou 30 anos, para que uma geração inteira não tenha contacto com os filmes e tropece acidentalmente nos livros. Fenómenos destes já aconteceram: temos como exemplo a série de livros Mary Poppins, que foram enterrados no esquecimento, assim que o filme estourou no cinema. Só agora é que eles foram reeditados e já estão a criar um novo grupo de fieis leitores.
Imagem retirada daqui
A trilogia Jogos da Fome é, acima de tudo, uma análise política sobre a Liberdade, o Poder, o auge e queda de uma civilização. Está muito mais ligada a conceitos como Ética e Moral, do que propriamente a momentos de ação e entretenimento. Não é um filme da Marvel ou da DC, e não há nada de errado em gostarmos de ver um bom e saudável filme de super-heróis. Mas Os Jogos da Fome NÃO SÃO uma história que serve apenas para entreter e, tristemente, foi tratada como tal nos filmes. Por detrás da adolescente Katniss Everdeen - que se oferece para tomar o lugar da irmã e morrer por ela – estamos a assistir a um sistema económico, político, social e cultural à beira de um colapso iminente. Com efeito, Katniss não foi a causadora da queda deste regime, ela foi simplesmente o pretexto, a gota de água que fez transbordar o copo. Como Herói, ela é mais reativa do que ativa. Foi empurrada para ser o rosto da Resistência sem que ninguém se tivesse dado ao trabalho de lhe perguntar se queria fazer parte da mesma, e muito do que acontece nos livros escapa totalmente ao seu controlo. É precisamente por tudo isto que o fim desta saga é tão importante: cansada de ser um joguete nas mãos de todos, ela toma as rédeas e choca toda a gente com a sua decisão final.
Ao contrário da obra 1984, de George Orwell, esta história acontece não no auge de uma ditadura totalitária, mas já na fase da queda. E esta escolha de Suzanne Collins cria no leitor a sensação de esperança, de fé num futuro melhor. Por muito horrenda que seja a Realidade, o dia chegará em que o desejo de Liberdade e da Dignidade Humana serão mais fortes do que o medo da fome, da tortura e da morte.
Injustamente descartada, eis uma saga que merece ser lida. Com olhos de LER.

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